Gláucio Ary Dillon Soares
Há perto de um ano, a sociedade civil organizada se inquietou a respeito dos desaparecimentos no Estado do Rio de Janeiro. Justificadamente assustada com o número, que parecia altíssimo, fez críticas duras ao governo com grande repercussão dentro e fora do Brasil. Os dados existentes eram muito ruins, com muitas falhas. O Instituto de Segurança Pública, que é o órgão responsável pelas pesquisas, análises criminais e capacitação profissional no estado do Rio de Janeiro, vinculado à Secretaria de Segurança, convidou pesquisadores para ver como saber mais, como responder às perguntas e às justas críticas.
Surgiu a idéia de realizar uma pesquisa. Era necessária. Quem eram os desaparecidos? Não se sabia. Quantos reapareciam? Não se sabia. Eram homicídios? Não se sabia. Foi o desconhecimento e a má qualidade dos dados existentes que levou à realização de uma pesquisa sobre os desaparecimentos. Como consultor pro-bono, propuz realizar várias pesquisas menores, mais baratas, em seqüência, além de refinar a base de dados existente, que tem muitas deficiências. Para saber se eram homicídios, comparamos os perfis das vítimas de homicídios com o dos desaparecidos. O passo seguinte, em andamento, é baseado em entrevistas com as pessoas que registraram os desaparecimentos. O terceiro aproveitará outra pesquisa, maior, adicionando perguntas para estimar quantos são os desaparecimentos não registrados. Existem, mas não sabemos quantos são.
A notícia de que havia uma pesquisa sobre desaparecidos, realizada pelo ISP, gerou muitas especulações. As mais radicais afirmavam que muitos, talvez a maioria, eram vítimas de homicídios, cujos corpos não tinham sido encontrados. Essa hipótese, baseada em chute, é errada.
Desaparecimentos e homicídios não são farinha do mesmo saco. A análise de perfís não deixa dúvida: a predominância dos homens é muito maior entre as vítimas de homicídios: 92% vs 62% entre os desaparecidos. As mulheres representam menos de 10% das vítimas de homicídios, mas representam quatro de cada dez desaparecimentos registrados.
A idade também demonstra um perfil muito diferente: em comparação com as vítimas de homicídios: crianças e adolescentes, por um lado, e idosos, pelo outro, são muito mais freqüentes entre os desaparecidos. Há mais desaparecidos nas pontas da idade, entre os muito jovens e os idosos. É um perfil que bate com o de outros países, onde também há muitas crianças e idosos entre os “desaparecidos”. No Rio de Janeiro, os desaparecimentos são registrados pelos pais ou responsáveis, mas os reaparecimentos não. E as crianças estão brincando em casa, mas permanecem no registro dos desaparecidos. Na pesquisa que oriento apareceram muitos casos deste tipo.
Do outro lado da distribuição por idades, a percentagem de desaparecidos cresce depois dos 60 anos, em contraste com o que acontece na população porque as taxas de mortalidade aumentam e quanto maior a idade menor a percentagem sobre o total de pessoas. Os idosos representam 3% da população e 13% dos desaparecidos. Por que cresce a percentagem de desaparecidos nas idades mais avançadas? Por um lado, elas refletem a influência de doenças degenerativas, como a demência e o mal de Alzheimer; pelo outro, elas refletem a dramática perda de status que acompanha as idades avançadas, tanto na sociedade quanto na família. Perdem autonomia, passam a requerer cuidados, mas não há recursos financeiros ou emocionais para cuidá-los bem, alguns começam a vagar pelas ruas e são dados como desaparecidos. Não sabemos tratar nossos idosos – é um problema de direito próprio.
Dados de vários surveys mostraram o tremendo desprestígio das instituições públicas (federais, estaduais e municipais) no Brasil, o que pode fazer com que muitos não relatem os desaparecimentos. É a cidadania amedrontada, encolhida. A redução da cidadania, no Brasil, também se faz sentir na baixíssima percentagem dos que relataram desaparecimentos que se dão ao trabalho de informar o reaparecimento: menos de 2%!
A explicação pode residir parcialmente na dificuldade das relações com a polícia, no medo da polícia, e também pode residir parcialmente no clientelismo tradicional de uma cultura política que enfatiza direitos e não deveres, doações de cima e não conquistas de baixo. A cifra é real: 2%; as explicações são, apenas especulações que parecem sensatas. Reitero que esses mesmos fatores podem fazer com muitos desaparecimentos não sejam comunicados às autoridades. Não obstante, entre os que o foram, a grande maioria reapareceu: a pesquisa direta, feita com uma amostra dos que registraram os desaparecimentos, revela que 86% dos desaparecidos tinham reaparecido!
As notícias sobre os desaparecimentos suscitaram outra interpretação errada: os desaparecimento seriam um fenômeno do nosso estado ou, pelo menos, do nosso país. Não é assim. Os desaparecimentos são muito comuns em outros países: na Austrália, cada 15 minutos é registrado um desaparecimento, que totalizam 35 mil pessoas por ano (Missing Persons in Australia 2008). Noventa e cinco por cento reaparecem em pouco tempo, uma semana. A população da Austrália é de 21 milhões de pessoas.
Na Nova Zelândia, a polícia registra oito mil pessoas como desaparecidas por ano. A população na Nova Zelândia é apenas quatro milhões e duzentas mil. O Rio de Janeiro tem perto de 15 milhões e menos de cinco mil desaparecidos. A taxa de desaparecidos na Austrália é de 167 por cem mil; é de 190 por cem mil na Nova Zelândia e, no Rio de Janeiro, arredondando, ela é de 33 por cem mil. As taxas são muito mais altas na Austrália e na Nova Zelândia. Porém, isso não significa que realmente desapareçam muito mais pessoas na Austrália e na Nova Zelândia, mas que a população australiana e a neozelandesa relatam os desaparecimentos em maior número e mais rapidamente.
As lições dessa pesquisa, e dos números que ela produziu, vão além da descrição e das explicações para os desaparecimentos. As reações negativas aos primeiros resultados foram além da realidade. Mostraram que o imaginário da mídia e da população é pior do que a própria realidade que é, reconhecidamente, muito ruim. Num cenário em que as instituições públicas estão desacreditadas, exageramos o pessimismo das nossas interpretações.
Sou um dos poucos otimistas que a onda pessimista não afogou. Considero que a própria realização de uma pesquisa em área tão sensível revela um desejo de acertar. Valorizo o fato de que, em parte, a pesquisa foi uma resposta positiva às pressões da sociedade civil. Seus primeiros resultados dissolveram nossos maiores medos. Se buscarmos, veremos que há muitas iniciativas positivas variadas em vários pontos do país.
O Brasil tem jeito!
Surgiu a idéia de realizar uma pesquisa. Era necessária. Quem eram os desaparecidos? Não se sabia. Quantos reapareciam? Não se sabia. Eram homicídios? Não se sabia. Foi o desconhecimento e a má qualidade dos dados existentes que levou à realização de uma pesquisa sobre os desaparecimentos. Como consultor pro-bono, propuz realizar várias pesquisas menores, mais baratas, em seqüência, além de refinar a base de dados existente, que tem muitas deficiências. Para saber se eram homicídios, comparamos os perfis das vítimas de homicídios com o dos desaparecidos. O passo seguinte, em andamento, é baseado em entrevistas com as pessoas que registraram os desaparecimentos. O terceiro aproveitará outra pesquisa, maior, adicionando perguntas para estimar quantos são os desaparecimentos não registrados. Existem, mas não sabemos quantos são.
A notícia de que havia uma pesquisa sobre desaparecidos, realizada pelo ISP, gerou muitas especulações. As mais radicais afirmavam que muitos, talvez a maioria, eram vítimas de homicídios, cujos corpos não tinham sido encontrados. Essa hipótese, baseada em chute, é errada.
Desaparecimentos e homicídios não são farinha do mesmo saco. A análise de perfís não deixa dúvida: a predominância dos homens é muito maior entre as vítimas de homicídios: 92% vs 62% entre os desaparecidos. As mulheres representam menos de 10% das vítimas de homicídios, mas representam quatro de cada dez desaparecimentos registrados.
A idade também demonstra um perfil muito diferente: em comparação com as vítimas de homicídios: crianças e adolescentes, por um lado, e idosos, pelo outro, são muito mais freqüentes entre os desaparecidos. Há mais desaparecidos nas pontas da idade, entre os muito jovens e os idosos. É um perfil que bate com o de outros países, onde também há muitas crianças e idosos entre os “desaparecidos”. No Rio de Janeiro, os desaparecimentos são registrados pelos pais ou responsáveis, mas os reaparecimentos não. E as crianças estão brincando em casa, mas permanecem no registro dos desaparecidos. Na pesquisa que oriento apareceram muitos casos deste tipo.
Do outro lado da distribuição por idades, a percentagem de desaparecidos cresce depois dos 60 anos, em contraste com o que acontece na população porque as taxas de mortalidade aumentam e quanto maior a idade menor a percentagem sobre o total de pessoas. Os idosos representam 3% da população e 13% dos desaparecidos. Por que cresce a percentagem de desaparecidos nas idades mais avançadas? Por um lado, elas refletem a influência de doenças degenerativas, como a demência e o mal de Alzheimer; pelo outro, elas refletem a dramática perda de status que acompanha as idades avançadas, tanto na sociedade quanto na família. Perdem autonomia, passam a requerer cuidados, mas não há recursos financeiros ou emocionais para cuidá-los bem, alguns começam a vagar pelas ruas e são dados como desaparecidos. Não sabemos tratar nossos idosos – é um problema de direito próprio.
Dados de vários surveys mostraram o tremendo desprestígio das instituições públicas (federais, estaduais e municipais) no Brasil, o que pode fazer com que muitos não relatem os desaparecimentos. É a cidadania amedrontada, encolhida. A redução da cidadania, no Brasil, também se faz sentir na baixíssima percentagem dos que relataram desaparecimentos que se dão ao trabalho de informar o reaparecimento: menos de 2%!
A explicação pode residir parcialmente na dificuldade das relações com a polícia, no medo da polícia, e também pode residir parcialmente no clientelismo tradicional de uma cultura política que enfatiza direitos e não deveres, doações de cima e não conquistas de baixo. A cifra é real: 2%; as explicações são, apenas especulações que parecem sensatas. Reitero que esses mesmos fatores podem fazer com muitos desaparecimentos não sejam comunicados às autoridades. Não obstante, entre os que o foram, a grande maioria reapareceu: a pesquisa direta, feita com uma amostra dos que registraram os desaparecimentos, revela que 86% dos desaparecidos tinham reaparecido!
As notícias sobre os desaparecimentos suscitaram outra interpretação errada: os desaparecimento seriam um fenômeno do nosso estado ou, pelo menos, do nosso país. Não é assim. Os desaparecimentos são muito comuns em outros países: na Austrália, cada 15 minutos é registrado um desaparecimento, que totalizam 35 mil pessoas por ano (Missing Persons in Australia 2008). Noventa e cinco por cento reaparecem em pouco tempo, uma semana. A população da Austrália é de 21 milhões de pessoas.
Na Nova Zelândia, a polícia registra oito mil pessoas como desaparecidas por ano. A população na Nova Zelândia é apenas quatro milhões e duzentas mil. O Rio de Janeiro tem perto de 15 milhões e menos de cinco mil desaparecidos. A taxa de desaparecidos na Austrália é de 167 por cem mil; é de 190 por cem mil na Nova Zelândia e, no Rio de Janeiro, arredondando, ela é de 33 por cem mil. As taxas são muito mais altas na Austrália e na Nova Zelândia. Porém, isso não significa que realmente desapareçam muito mais pessoas na Austrália e na Nova Zelândia, mas que a população australiana e a neozelandesa relatam os desaparecimentos em maior número e mais rapidamente.
As lições dessa pesquisa, e dos números que ela produziu, vão além da descrição e das explicações para os desaparecimentos. As reações negativas aos primeiros resultados foram além da realidade. Mostraram que o imaginário da mídia e da população é pior do que a própria realidade que é, reconhecidamente, muito ruim. Num cenário em que as instituições públicas estão desacreditadas, exageramos o pessimismo das nossas interpretações.
Sou um dos poucos otimistas que a onda pessimista não afogou. Considero que a própria realização de uma pesquisa em área tão sensível revela um desejo de acertar. Valorizo o fato de que, em parte, a pesquisa foi uma resposta positiva às pressões da sociedade civil. Seus primeiros resultados dissolveram nossos maiores medos. Se buscarmos, veremos que há muitas iniciativas positivas variadas em vários pontos do país.
O Brasil tem jeito!
(publicado n’O GLOBO de 13 de novembro de 2009)
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