domingo, 11 de novembro de 2018

Segurança Pública baseada em evidências


Joana Monteiro* 
Em 2017 assistimos a uma crise sem precedentes no Rio de Janeiro devido ao quadro de calamidade fiscal do estado. O governo atrasou o pagamento dos servidores, parou de pagar todos os seus fornecedores e observou os serviços públicos colapsarem. O acordo de recuperação fiscal, a alta do barril de petróleo e a intervenção federal na área de segurança trouxeram alívio, mas o cenário fiscal ainda é muito crítico e não tende a melhorar nos próximos anos.

Nesse contexto não há mais espaço para discutir políticas públicas fundamentadas em fortes aumentos de despesa, como aumento expressivo do efetivo policial ou compras significativas de material e viaturas. É urgente profissionalizar a gestão, definir prioridades e fazer mais com os recursos existentes. E, para isso, não há espaço para achismo nem empirismo. É preciso desenhar políticas baseadas em evidências. Isso implica em usar dados e informações para identificar e priorizar os problemas, escolher políticas cuja efetividade tenha alguma evidência, monitorar a implementação e avaliar seus resultados.

Na área de segurança, isso se traduz em distribuir o efetivo policial entre batalhões e delegacias segundo uma regra que considere as incidências criminais, população e área; identificar ruas e horários com maior incidência de crimes para ser muito preciso e específico na alocação do patrulhamento; analisar as circunstâncias e motivações de homicídio para poder desenhar políticas preventivas; usar tecnologia para fazer supervisão eletrônica; fazer análise de padrões balísticos para facilitar a identificação de autores de crimes; monitorar os indicadores criminais e taxas de elucidação de crimes em reuniões gerenciais; e avaliar o impacto de iniciativas inovadoras, entre muitos outros exemplos.

Implantar uma cultura de uso de dados no Rio de Janeiro é possível. O estado já possui três estruturas que são vitais nesse processo: o Centro Integrado de Comando e Controle, a Diretoria de Informática da Polícia Civil e o Instituto de Segurança Pública. Além disso, possui um Sistema Integrado de Metas, que precisa ser fortalecido e contar com a liderança do governador. Seguir esse caminho requer, hoje, visão e investimento direcionado à produção de informação, ao desenvolvimento de competências profissionais para analisar dados e à criação de estruturas de incentivo para seu uso. Essa é uma agenda silenciosa, mas a única que tem evidências de efetividade.

* Diretora-presidente do Instituto de Segurança Pública

quarta-feira, 7 de novembro de 2018

TIRANOS


                                                                                                                                                              Zeca Borges
Não me esqueço daquele dia de julho de 1967. Eu saía do edifício Marquês do Herval, no centro do Rio. Todos os que frequentaram a livraria Leonardo da Vinci, no subsolo, ou o escritório de Hércules Correia, na verdade uma central do Partidão, num dos andares do alto, sempre recordam aquela espiral da saída. Pois eu estava lá, no fim da espiral, quando percebi os papéis    picados caindo no chão da avenida Rio Branco. Eram poucos e tímidos. Os tempos eram difíceis. Fui subindo em direção à Presidente Vargas, curioso, olhando as janelas dos prédios. Elas se abriam e logo a mão de alguém lançava um punhado de papéis picados. Ao chegar à esquina da Nilo Peçanha, quando a vista se alarga para os lados do Castelo e da Carioca, pude perceber a festa silenciosa. A chuva branca aumentara, espalhara-se pela São José e pelo alto da Rio Branco. 
Esperando o sinal abrir, ouvi a notícia: o marechal Castelo Branco morrera num acidente no Ceará. As pessoas sorriam e se abraçavam. Cruzavam os olhares cúmplices pela rua. Encontrei um amigo. Abrimos os braços, alegres. Trocamos notícias e boatos. Naquela noite os bares ficaram cheios, como se um América de todos nós tivesse sido campeão. As comemorações atravessaram a madrugada. E olhem que foi um acidente, o nosso primeiro ditador de plantão fora vítima de um mero choque de aviões no céu de Mecejana. Não sei como foi na Nicarágua, quando Somoza morreu, em 1980. Teria havido mais vibração? Afinal, sua morte foi obra de um atentado.  Um tiro de bazuca explodiu o seu carro blindado, em Assunção. 
É curioso como as pessoas comemoram a morte e o justiçamento de tiranos. Lembro-me sempre da foto de Mussolini e Carla Petacci, fuzilados e pendurados num posto de gasolina em Milão, o povo ao redor, gente sorrindo. Uma festa popular. E, muitas vezes, os matadores viram heróis. Encontrei outro dia, na seção "Há 50 Anos", da Folha de S. Paulo, a seguinte manchete de primeira página: "A CÂMARA URUGUAIA HOMENAGEIA UNANIMEMENTE A MEMÓRIA DO MATADOR DO PRESIDENTE SOMOZA. Era tio do ex-ditador morto no Paraguai. O justiceiro homenageado foi o jornalista Rigoberto Lopes Pérez, morto logo após o atentado. 
Outro dia, quando li as notícias da jovem soldado da PM de São Paulo que reagiu a um assalto e atirou em um bandido que ameaçava mães e suas crianças, lembrei-me da comemoração pela morte de Castelo Branco. O que liga esses dois acontecimentos, o que me surpreende, é o fato de algumas pessoas acreditarem que todos aqueles que, nos dias de hoje, lutamos pelos direitos civis –    e muitos de nós lutaram contra a ditadura – se devam comover com a morte de assaltantes ou soldados do tráfico de drogas. Se festejamos a morte de grandes tiranos, porque alguns ficam perplexos diante da satisfação de outros pela morte dos tiranetes do nosso cotidiano, que não dariam chance a uma mulher grávida, ou a um policial voltando do trabalho?
Não posso falar pelos outros, mas devo afirmar que não me comove o mais trágico destino de qualquer desses criminosos. Sei quem são, e nessa luta não há lugar para tolos. É possível que a questão não esteja em quem morre, mas em quem mata. Na verdade, o que me interessa nessa história toda, é o comportamento da minha polícia. Se um traficante é executado por um policial, é estabelecida uma grave ameaça contra qualquer cidadão, contra todos nós. Isto é inaceitável. Se a polícia sair por aí executando, mesmo se só morressem criminosos, a violência ficaria incontrolável. Mas se um criminoso morre numa disputa de facções ou em confronto com a polícia, tudo muda.
Repito: não me comove a morte de um bandido, mas se for uma execução, me preocupa. Aí estaremos todos correndo risco, por mais encastelados que estejamos. E mais ainda os moradores das comunidades. Porque a garantia efetiva que qualquer cidadão tem de que os seus direitos serão respeitados pela polícia, é essa polícia respeitar os direitos do pior dos bandidos. Se ela o faz, certamente respeitará os dele. A garantia que temos, simples cidadãos, não está apenas no fato de estarmos numa democracia, o Congresso estar aberto, haver juízes de plantão, os jornais estarem rodando livres. Isto ajuda, mas se tem mostrado muito distante de nosso dia a dia. A garantia efetiva que temos, insisto, é a prática diária de nossa polícia. E é por isso que devemos lutar e exigir um compromisso dessa polícia com o respeito rotineiro aos direitos de todos. Por nós e por eles, os policiais - jamais pelos bandidos.

terça-feira, 6 de novembro de 2018

Como vai a segurança pública?

Como vai a segurança pública?
Há quem diga que ninguém faz nada, mas como, se temos em nosso banco de dados mais de dois milhões de relatos com dezenas de informações? A população está fazendo sua parte, sim. E o exército está aí, experimente imaginar se não estivesse...

Como o Disque Denúncia conduz suas operações?
Somos poucos e temos recursos limitados. Portando conduzimos nossas operações com equipes multitarefas onde a velocidade é nossa moeda de troca. Quando começamos, nos meados dos anos 90, aplicávamos  princípios gerais  de desempenho eficaz, mas ainda não havia as tecnologias que hoje estão disponíveis. O que funcionava era a cabeça das pessoas, sua atenção e raciocínio treinados pela dinâmica da experiência. E é claro, havia falhas diversas, principalmente de comunicação e de uso de protocolos. As pessoas esqueciam de fazer as coisas, mas mesmo assim, funcionava. Hoje você tem máquinas, tem TI, que seguem programas automatizados, em máquinas que não têm filhos, amigos, contas a pagar, ressacas, etc. Então os protocolos não falham, os controles funcionam. Não que as pessoas não continuem a esquecer, mas os processos estão mais seguros e eficientes.

É difícil adotar estes procedimentos na polícia?
Para mudar a mentalidade de uma organização é preciso persistência, nunca desistir. Você deve manter o foco nos que querem colaborar e não deve perder tempo tentando quebrar resistências. Será difícil mudar a gestão da linha de frente e dos gestores intermediários, porque as pessoas nessas posições precisam de tempo para se adaptar à novidades, como a que oferece apoio (que alguns cantores chamam coaching), em vez de monitorá-los. As resistências têm muito a ver com o medo de assumir responsabilidades. O ideal seria, como foi para o DD, formar equipes pequenas, estáveis e autogeridas, com autonomia para realizar seu trabalho e mantidas responsáveis por seus compromissos. Equipes ágeis precisam de apoio direto da direção para se autogerir.

Como isto tudo começou?
Eu vim do mercado financeiro, onde a sobrevivência depende da rapidez das reações ao mundo exterior. Nenhum fator interno afeta os seus resultados importantes. O que vale é o que vem de fora, as decisões vitais para a organização são tomadas fora dela. Você tem que ter a capacidade de perceber o que está acontecendo no mercado com a máquina funcionando.

Por exemplo?
No mercado brasileiro de capitais, existe uma organização chamada Distribuidora de Valores, que tem uma agilidade ímpar, por uma razão curiosa: ela não serve para nada. O que acontece é que você não precisa compreender sua missão e seus valores, elaborar um detalhado planejamento estratégico, nada disso. Tudo o que você precisa é entender o mercado financeiro, de uma maneira ampla e profunda. Entender, e não, conhecer. Desde o começo, o DD tem o comportamento de uma distribuidora de valores, voltado para o mercado externo de segurança pública do Rio de Janeiro, sem perder tempo com questões internas, miúdas.

Poderia nos dar um exemplo disso na segurança pública?
Não é difícil. Veja por exemplo uma questão atual, a da integração das agências policiais. Há hoje disputas de poder entre elas todas e até mesmo dentro de cada uma delas. Disputas por mais poder e por tudo o que representa poder. E, enquanto isto, morrem policiais em atentados, cidadãos por balas perdidas e até bandidos em disputas de territórios. Os cidadãos, clientes dos serviços de segurança pública, recebem um péssimo tratamento, enquanto os agentes da ordem se envolvem em embates personalistas, muitas vezes, e que não levam a lugar nenhum. E as pessoas vão morrendo, sendo assaltadas, estupradas e vão tendo seus direitos civis desrespeitados. De que adiantam esses conflitos internos?

De que forma o DD conduz suas relações com as polícias?
Podemos ser críticos, mas somos parceiros, acima de tudo. É o que dita nosso comportamento. Precisamos estar sempre disponíveis e atentos a suas demandas. Em segundo lugar, há uma realidade que não podemos ignorar, as dificuldades que os policiais enfrentam para exercerem suas funções com eficiência. Suas instituições têm sérios problemas em todas as áreas de gestão. Faltam meios, recursos, capacitação, treinamento, etc. O que podemos fazer, de nossa parte? Comunicação principalmente, e também articulação com a população. E alimentar de informações uma rede informal criada nestes 23 anos. Como as instituições estão fracas, trabalhamos com os indivíduos, policiais que confiam em nós, e que conhecemos (e eles nos conhecem) desde que entraram nas Forças.

E como o DD encara o crime e a violência?
Como um bom negócio, mais protegido pelos tolos do que pelos canalhas. O principal objetivo do Disque-Denúncia, como o das polícias, deve ser tornar o crime cada dia mais difícil, mais perigoso, e cada dia mais caro. É impossível acabar com ele, ninguém pode pretender isso.

E, como combatê-lo?
Num mercado competitivo, combate-se um concorrente afetando seus preços e seu capital de giro. Procura-se elevar o custo de suas vendas e de seus estoques. No combate ao crime, as polícias deveriam fazer algo parecido. Crime é negócio, repito. Bater no preço da droga significa dispor de uma gama de recursos diversos, capacitação, treinamento, supervisão (esses dois estão em extinção no Rio), concentração nas áreas de maior incidência, atividade policial permanente (abordagem+abordagem +abordagem). A PM de SP abordou 15 milhões de pessoas em 2017. À medida em que as apreensões de estoques de drogas e munições ocorrem, aumenta a necessidade de capital de giro para manter os negócios, e o preço da droga sobe.

Pode-se encontrar mais experiências no mundo dos negócios?
Sempre. Por exemplo, houve um tempo em que o mercado de dólar era restrito e controlado, mas havia um razoável mercado ilegal. Todo mundo tinha os seus doleiros, inclusive os grandes bancos e até o Banco Central. O motivo de o BC operar reservadamente num mercado ilegal era para ter uma noção realista dos preços no paralelo, fator relevante para suas operações legais. Para combater o tráfico de drogas, é de grande importância conhecer o seu mercado, saber a qualidade e o preço dos diversos pontos de venda. A polícia deveria acompanhar o preço e a qualidade do sacolé de 50 ou dos pinos, por exemplo, na Rocinha, Jacarezinho, Maré e outras áreas importantes. E certamente, ter informações do mercado sul americano e internacional, como esta alta do dólar está afetando a atividade. Resta a pergunta: isto é feito? Por quem?

segunda-feira, 24 de setembro de 2018

Novos Tempos

Há 22 anos, quando iniciamos o projeto do Disque-Denúncia, sinceramente não tínhamos a menor ideia do caminho a seguir. Não contávamos com informações confiáveis, qualitativas ou quantitativas. Precisávamos resolver nossos problemas de segurança pública através das informações da população e com as polícias de que dispúnhamos, explorando as narrativas dos mais experientes delegados e inspetores, verdadeiros arquivos de conhecimento policial. A situação do Rio era muito pior do que a de hoje, mas o que nos chama a atenção, de lá para cá, é a expressiva diferença existente entre o grau de complexidade com que agora precisamos lidar, comparada com a daquela época, complicada, é verdade, mas com soluções perfeitamente lógicas. 

Sistemas complexos sempre nos atormentaram, é claro. Em qualquer abordagem de uma situação criminosa nos aguarda a presença do imprevisível e do insperado. Mas hoje em dia a complexidade deixou de ser assunto referente a grandes eventos ou organizações, regiões metropolitanas, por exemplo. Prevenção, investigações e as próprias organizações policiais passaram a ser gerenciados a partir desta nova realidade, em função dos avanços da tecnologia de informação. Numa ocorrência de um sequestro em 1995, tivemos que procurar um Guia Rex de ruas do Rio, para localizarmos um endereço de cativeiro. Imaginem a diferença que faria contar com um moderno smartphone ou mesmo um laptop. Podemos afirmar com absoluta certeza que, em alguns anos, um cidadão não precisará dirigir-se a uma delegacia para registrar uma ocorrência, se é que existirão delegacias e batalhões. Organizações criminosas, antigamente isoladas em clãs são cada vez interligadas e interdependentes, o que significa que os crimes serão cada vez mais complexos.

Uma central de policia será (e, já é) muito mais difícil de administrar do que uma meramente complicada, como as de hoje. Sistemas complexos interagem de forma inesperada, o que os torna mais difícil de prever. As regras tradicionais de causa e efeito não funcionam como esperamos, pois o grau de complexidade pode estar além da nossa capacidade cognitiva. É mais difícil entender as coisas, fazer apostas, pois o conhecimento tradicional pode não prever o comportamento de um sistema complexo. E, se num sistema desses, o valor do fator atípico, o "outlier", pode ser muito mais importante do que a média, num sistema que envolva ação criminosa, então, será muito mais decisivo.

O que mais nos preocupa hoje em dia, é que, além das ferramentas analíticas existentes serem desconhecidas de estudiosos de investigação, ou, o que é pior, desprezadas, há uma carência imensa de executivos de polícia ou das academias que formam os gestores policiais de amanhã, que saibam lidar com elas. Minha experiência com inovações gerenciais indica haver uma primeira fase em que elas são rejeitadas como inoperantes, na segunda são aceitas como bruxaria e, finalmente, percebidas como progresso científico indispensável. Esta hoje é a grande questão: como trazer este conhecimento para o primeiro plano de nossas organizações policiais?

Um princípio

Quando meu pensamento aborda o crime e a violência, o foco está na gestão e, particularmente, no marketing. Estou longe de encarar o crime como uma questão sociológica. Minha tarefa é convencer o cidadão a trazer informações relevantes sobre atividades criminosas e levar a polícia a ter apreço por essas informações. Não posso esperar que nossos aparelhos policiais cheguem a um nível de primeiro mundo para agir: é com esta polícia que aí está, com esta justiça, e com estas leis, que preciso resolver meus problemas de gestão. O resto é paralisia decisória.

sábado, 22 de setembro de 2018

ANTES DE TUDO

Uma experiência de sucesso no combate ao crime.

O que se pode aprender com o combate aos sequestros no Rio nos anos 1990? 
O mundo dos negócios tem uma lógica própria que não admite vaidades. Quando uma empresa lança uma ideia ou produto inovador, a primeira coisa que as concorrentes fazem é copiar aquilo sem pudor e, quando possível, aprimorar para relançar. Em nova embalagem, que seja. É a lei da sobrevivência. Pois note-se o que aconteceu, naqueles anos, na área de segurança pública: Houve no Rio de Janeiro um caso exemplar de combate aos sequestros. Ao deparar-se com o intolerável recorde de 108 sequestros registrados num só ano, empreendeu-se uma ação eficaz. Três anos depois, a polícia do Rio havia esvaziado todos os cativeiros. Do sucesso dessa experiência, restaram muitas certezas, mas uma indagação ficou no ar: porque ninguém nunca sequer tentou aprender com esse episódio?

Por que não se aproveitou essa experiência?
Há quem vá dizer que no mundo habitado pelos políticos não há grandeza desta latitude. E os políticos não vão poder reclamar. Costuma-se mesmo abater boas idéias a golpes de caneta quando a procedência é a prancheta da oposição. O fato é que não se pode mais transigir com essa conduta no campo da segurança pública. Não por nada, mas é que há muita gente morrendo, neste momento, em nosso país, e nada parece acontecer. Quem já perdeu alguém nesta guerra, sabe como é desesperador. Para que não se perca mais tempo, vamos direto ao ponto: é preciso que se diga o que aconteceu no Rio para que esta experiência possa ser apropriada. 

Como tudo começou?
A sinalização de que algo começava a mudar foi dada, ainda em 1995, pelo então chefe da DAS, Hélio Luz. “A DAS não sequestra mais”, anunciou. Era uma frase com dois recados. Um, à sociedade, de que a polícia reconhecia seus problemas internos. Outro, aos maus policiais, sequestradores, de que seus dias estavam contados. O mesmo se repetiu com a chegada à DAS do delegado Marcos Reimão, dois anos depois. A simples notícia de que ele estaria à frente da divisão fez com que sete sequestrados fossem soltos. Houve quem levantasse a hipótese de que policiais estivessem por trás dos crimes. Bastou a percepção de que a autoridade se impôs para que a casa começasse a se arrumar. 

O que aconteceu?
O Rio venceu os sequestros não porque os sequestradores tenham mudado para outro estado a sede de seus negócios. A maior parte deles, ainda hoje, tem endereço fixo no complexo de segurança máxima de Bangu. O que se conseguiu foi reunir policiais dispostos a realizar uma missão da qual mais tarde se orgulhariam, dar-lhes condições de trabalho e um suporte de inteligência às investigações. Tudo isso como apoio e a presença constante da sociedade civil. Nada de novo. Só o trabalho levado a sério.

Como aconteceu?
O primeiro passo foi a realização de um seminário em que se juntaram políticos, acadêmicos, policiais civis e militares e, o mais importante, as vítimas. Gente que foi contar o que sentiu, viu e ouviu quando estava sob o domínio de bandidos. Se ainda vale a comparação com o mundo empresarial, levou-se o cliente para a reunião de diretoria. A nova Divisão Anti-Sequestro (DAS) que surgiu dali também tinha inovações. Acabou-se com o sistema em que um caso é investigado por apenas uma equipe que se desdobra em várias tarefas, como é o usual nas delegacias, onde os plantões de 24 horas são intercalados por 72 horas de folga. Não havia como deixar os sequestrados esperando no cativeiro pela folga do policial. Os casos passaram a ser assunto de toda a divisão, mas cada um com sua tarefa específica. 

Qual a razão do sucesso?
Inteligência e investigação, antes de tudo, como fossem uma única tarefa. Os homens de inteligência analisavam as informações enquanto investigadores buscavam pistas. Tudo isso sob a inspiração do CISP, órgão de inteligência da polícia do Rio na época, sob a batuta do lendário Coronel Romeu. O Disque-Denúncia, criado alguns anos antes por Romeu, funcionou — e ainda é assim — como uma ferramenta poderosa para que as comunidades pudessem colaborar com o trabalho policial sem medo, certas de que a confidencialidade é um compromisso jamais desfeito. Cento e noventa e oito bandidos foram presos pela Divisão Anti-Sequestro em dois anos. Em nenhum desses casos permitiu-se o pagamento de resgate. Com isso, tirou-se o fôlego financeiro que as quadrilhas teriam para financiar novas ações. E assim se conseguiu chegar, em maio de 1998, ao “sequestro zero” no Rio de Janeiro. As pessoas certas, trabalhando sério, com o apoio da sociedade. É difícil?

E agora, vinte anos depois?
Tudo isso hoje parece muito simples. O fato é que até então, ninguém sabia disso. Descobriu-se trabalhando. Essa parte já foi feita. 

Porque, até agora, ninguém procurou aprender com a experiência do Rio de Janeiro? 
Com a palavra os homens públicos.

quarta-feira, 10 de agosto de 2011

Pior que um crime

Zeca Borges

Numa noite de fevereiro de 1999, um jovem imigrante africano estava tomando ar em frente à sua casa, na periferia de Nova York, quando quatro homens brancos, em um carro sem placas, o abordaram agressivamente. Amadou Diallo, este era o seu nome, havia tido um amigo atacado por brancos dias antes, e, além disso, era gago e mal falava inglês.

Os quatro eram policiais de um esquadrão especializado em combater crimes de rua, estavam armados e dois deles portavam tacos de beisebol. Eram altos, jovens e encorpados, em função dos coletes à prova de balas que usavam. O jovem negro correu para a portaria de seu prédio, apavorado.Os policiais o advertiram para parar e foram atrás dele. Falavam com ele, mas ele nada respondia e tentava desesperadamente abrir a porta do prédio com a mão esquerda. A direita estava dentro do bolso e ele a tirou, segurando um objeto escuro. Era sua carteira de documentos.

Mas não foi isso o que os policiais viram. Um deles gritou, como nos filmes: “Arma de fogo! Ele tem uma arma!” Em sete segundos foram disparados 41 tiros pela equipe policial. Depois o silêncio. Os policiais se aproximaram de Diallo, que jazia no chão, a mão direita afastada do corpo. Estava aberta e mostrava sua carteira. Um deles exclamou: “Onde está a maldita arma?!”

É surpreendente a quantidade de estudos que os americanos dedicam aos problemas da ação policial. O caso Diallo foi um deles. Teve a mais ampla repercussão na sociedade norte-americana. Acadêmicos, jornalistas, policiais, políticos e ativistas de todo o país esquadrinharam cada aspecto do acontecimento, dos envolvidos, e de todo o entorno desta tragédia. Amadou Diallo é mais que um nome - é uma referência no ativismo de direitos civis e em estudos do sistema de justiça criminal dos EUA.

Nenhum dos policiais foi condenado, embora tenham ido a julgamento, ao contrário do que aconteceu no caso Jean Charles, o brasileiro vítima de um ataque deste tipo da Scotland Yard, no metrô de Londres. Em casos como o deles, nenhuma explicação satisfaz. O que ocorreu pode ser tudo, menos um acidente. Em geral encontramos uma sucessão de erros, detonada por uma presunção inicial falsa.

O que podemos observar, o que faz toda a diferença, é a extrema preocupação de todas as forças sociais em evitar que erros como esses se repitam. Para o futuro, para a gestão das polícias, é fundamental saber exatamente o que aconteceu, segundo a segundo, quadro a quadro.O esclarecimento público e transparente não visa crucificar ninguém, mas evitar outras mortes. Com isso a polícia aperfeiçoa seus procedimentos, novas leis são aprovadas, enfim, algo muda, não por causa da tragédia, mas apesar dela.

É claro que é importante saber de quem é a culpa e, principalmente, se houver indício de crime, processar os suspeitos. Mas esconder os fatos, jogar a sujeira para baixo do tapete, afastar os especialistas (inclusive da polícia) dos detalhes mais importantes de um acontecimento deste tipo, significa garantir que assistiremos novamente a esse filme, do qual já sabemos o final, e quem são os culpados.

domingo, 7 de agosto de 2011

Feliz Dia dos Pais (ou: Efeito Borboleta)

Veja, meu caro deputado, o ilustre passageiro sentado ao seu lado e que faz o sinal da cruz no momento em que o avião arremete pela pista, decolando de Brasília para o seu estado natal, onde irá passar o Dia dos Pais com sua família.

Ele certamente ignora o que seja o efeito borboleta e seus riscos. Fatores aparentemente insignificantes podem, ao longo do tempo, se expandir e desencadear reações capazes de mudar radicalmente um estado de coisas. A moderna teoria do caos elaborou a tese do efeito borboleta, em que se admite a possibilidade de que um simples bater de asas de uma borboleta no interior do Brasil desencadeie um tornado no Texas. Como ensinava vovó: o diabo mora nos detalhes.

É possível, e a teoria de Lorenz certamente reforça, que uma única decisão do Supremo Tribunal Federal esteja, de certa forma, relacionada a algum risco que corram o senhor e seu companheiro de viagem neste Dia dos Pais. Nada comparável aos ataques do PCC em São Paulo no Dia das Mães de maio de 2006. No início daquele o ano, no mês de fevereiro, quando o STF mudou seu ponto de vista sobre o regime integralmente fechado, previsto em lei para os condenados por crimes hediondos, uma bomba relógio foi acionada, de consequências inesperadas para a manutenção da segurança pública nos estados da federação.

A mudança de entendimento aconteceu porque os três ministros recém nomeados adotaram opiniões distintas de seus antecessores. A decisão foi proferida no julgamento de uma ação de Hábeas Corpus, em um caso aparentemente isolado. A partir dela, Oséias de Campos, condenado por molestar sexualmente três crianças entre seis e oito anos de idade, não teve mais que cumprir toda a sua pena em regime fechado. Ele passou a ter direito à mudança para o regime semi aberto.

Em outras palavras, passou a poder frequentar periodicamente a casa de sua família e a sair da prisão, durante o dia, para trabalhar ou estudar.

A decisão do Supremo Tribunal Federal, que deveria beneficiar apenas Oséias, teve impacto profundo na comunidade jurídica. Amplamente divulgada pela imprensa, ela foi proferida após longa discussão e alguns ministros foram categóricos ao criticar o regime integralmente fechado. "Esse movimento de exacerbação de penas como solução ou como arma bastante ao combate à criminalidade só tem servido a finalidades retóricas e simbólicas", afirmou um deles.

É bom lembrar de outro detalhe: depois da criação da súmula vinculante, todos os profissionais da área jurídica ficaram muito mais atentos às diretrizes traçadas pela Suprema Corte, mesmo em julgamentos isolados.

Num bater de asas, juízes de vários estados passaram a conceder aos condenados por crimes hediondos a mudança do regime fechado para o regime semi aberto. A decisão passou a ser considerada um precedente. Milhares de indivíduos condenados por crimes de tráfico de drogas, seqüestro, estupro, homicídio qualificado, dentre outros delitos, passaram a ter direito a visitar seus familiares, frequentar cursos e a trabalhar fora da prisão. Criminosos perigosos voltaram a circular novamente pela sociedade, contrariando o que a Lei de Crimes Hediondos determina, sem qualquer vigilância.

Em maio de 2006, três meses após a decisão do Supremo, somente no Estado de São Paulo, mais de 12 mil presos foram autorizados a passar a semana do Dia das Mães em suas casas. Condenados por crimes hediondos fizeram parte deste contingente, por força da nova orientação do STF.

Coincidência ou não, todos viram: foi quando se iniciaram os mais graves ataques às instituições democráticas de que se tem notícia em nosso país, as polícias ainda desprevenidas com as consequências das novidades de Brasília.

Novamente em agosto de 2006, no Dia dos Pais, outros milhares foram autorizados a comemorar o evento em liberdade, como todos os bons cidadãos o fizeram. Quase todos, pois o repórter Guilherme Portanova, permaneceu separado de sua família naquele domingo, encarcerado por ordem do PCC. Seu crime: viver em um país em que as autoridades têm cada vez mais dificuldade em proteger seus cidadãos.

Talvez os cientistas do MIT possam responder a mais esta indagação: será que o sopro de um vento liberal no planalto central também é capaz de desencadear um tornado aqui no Rio de Janeiro?

Há notícias claras de que importantes traficantes libertados recentemente estão empenhados em recuperar o antigo poder do CV do Rio de Janeiro. Alguns deles já estariam fora do país, negociando armas e drogas. Outros procuram ser transferidos de volta ao Rio, para desespero das autoridades fluminenses.

Parece haver esperança em Brasília de que os condenados por crimes hediondos sejam responsáveis, no exercício de sua liberdade.

Enquanto isso, se em São Paulo já se percebeu que a esperança pode ser derrotada pelo medo, no Rio isto pode ser uma questão de tempo, e voltaremos a assistir novamente a demonstrações de poder do aliado local do PCC.

Verifique o encosto de seu assento, por favor, e aperte o cinto.
Ah!...Feliz Dia dos Pais!

quarta-feira, 2 de junho de 2010

UPPS: de minha parte, obrigado

Zeca Borges
Conta-se muito esta história sobre Elizabeth I da Inglaterra. A rainha e seu protegido, Sir Walter Raleigh, divertiam-se a fumar charutos - na segunda metade do século XVI, isto devia ser uma grande novidade, dentre outras vindas da América.

Observando a fumaça, Raleigh afirmou que ela poderia ser pesada. E, apanhando um charuto novo, iniciou sua demonstração. Colocou-o numa balança e anotou seu peso. Acendeu-o e começou a fumá-lo, tendo o cuidado de colocar suas cinzas no prato da balança. Quando terminou, colocou o que restava do charuto junto às cinzas, e verificou o peso. A diferença que faltava, afirmou ele, era o quanto a fumaça pesava. Brilhante.
A rainha ficou ainda mais encantada com seu favorito. Embora tenha sido interessante, o que aconteceu depois já não tem relação com o assunto que iremos abordar. A história fica por aqui.


Uma das maiores contribuições de iniciativas como a das UPPs no combate ao crime tem muito a ver com a fumaça de charutos. Pode-se dizer o mesmo do Disque Denúncia e das ações preventivas da polícia civil e do BOPE, e, especialmente, das atuais atividades de policiamento ostensivo realizadas pela PM.
O resultado não aparenta peso, embora ele exista. A maneira de se obter esse peso tem algo a ver com o que Sir Walter Raleigh demonstrou. Se na cidade do Rio de Janeiro, por exemplo, os casos de homicídio caíram de acordo com as informações do ISP, podemos afirmar que 637 pessoas deixaram de morrer entre setembro de 2009 e abril de 2010. Estas 637 vidas foram poupadas no período. É o quanto pesa a fumaça.
Nunca se saberá quem foram os que escaparam. Conhecemos apenas os 3.615 que foram mortos, quem são e como foram chorados. Mas não houve comemoração na família dos que estão vivos. Como posso estar entre eles, de minha parte, muito obrigado.

quarta-feira, 24 de fevereiro de 2010

Brasília: sem governo, mas com polícia

Miguel Lucena

Enquanto juristas e cientistas políticos discutiam exaustivamente a crise política e moral por que passa o Distrito Federal, 2,5 mil supostos retirantes invadiam uma área de proteção ambiental de 200 hectares (2 milhões de metros quadrados) nos fundos do Itapoã, uma cidade nascida de uma invasão que deu muitos votos a políticos e enriqueceu um grupo de grileiros na Capital da República.

A invasão principiou no dia 12, em pleno carnaval e quando o governador José Roberto Arruda já havia sido preso e afastado do Governo do Distrito Federal. Destruíram a vegetação e nascentes, invadiram áreas pública e privada, incendiaram o cerrado sem dó nem piedade.

Por trás do movimento, interesses da especulação imobiliária e políticos, fomentados por grileiros e cabos eleitorais em busca do lucro e currais para as eleições que se aproximam. Cerca de 84 veículos de luxo foram filmados pela Inteligência da Secretaria de Segurança e da Polícia Civil do DF dando apoio aos invasores.

Governador preso, vice-governador na corda bamba, tudo indicava que o campo era fértil para toda sorte de malefícios – da simples esperteza ao crime mais hediondo -, mas foi aí que a súcia delinqüente se enganou. No meio deles, 14 criminosos com antecedentes de assalto a mão armada, tráfico de drogas e homicídio doloso qualificado.

As instituições permanentes do Estado demonstraram um grande poder de resposta e coesão, agindo de forma articulada, com estratégia e tática, comandos unificados e uma disposição incrível de acertar, sem os ciúmes incompreensíveis que se demonstram no dia a dia das corporações.

Delegados e agentes, oficiais e praças, servidores dos órgãos de fiscalização, engenheiros e técnicos ambientais, todos se uniram em defesa do patrimônio público e do meio ambiente. Resultado: 41 grileiros presos por dano ao meio ambiente e ocupação irregular do solo, além de invasão a terras públicas, com penas que chegam a oito anos de reclusão, e 22 detidos por crime de pequeno potencial ofensivo, esbulho possessório, cuja pena é de até um ano de detenção.

No momento em que se apregoa a existência de uma metástase no organismo de poder do Distrito Federal, as instituições permanentes demonstram que, independentemente de governos, podem funcionar normalmente em defesa da sociedade, bastando para isso que o comando seja profissional, técnico e imparcial, sem a nefasta interferência da política partidária.

Miguel Lucena é Delegado-chefe da 6a Delegacia de Polícia Civil (Paranoá e Itapoã), no Distrito Federal

quinta-feira, 31 de dezembro de 2009

Os desaparecidos

Gláucio Ary Dillon Soares

Há perto de um ano, a sociedade civil organizada se inquietou a respeito dos desaparecimentos no Estado do Rio de Janeiro. Justificadamente assustada com o número, que parecia altíssimo, fez críticas duras ao governo com grande repercussão dentro e fora do Brasil. Os dados existentes eram muito ruins, com muitas falhas. O Instituto de Segurança Pública, que é o órgão responsável pelas pesquisas, análises criminais e capacitação profissional no estado do Rio de Janeiro, vinculado à Secretaria de Segurança, convidou pesquisadores para ver como saber mais, como responder às perguntas e às justas críticas.

Surgiu a idéia de realizar uma pesquisa. Era necessária. Quem eram os desaparecidos? Não se sabia. Quantos reapareciam? Não se sabia. Eram homicídios? Não se sabia. Foi o desconhecimento e a má qualidade dos dados existentes que levou à realização de uma pesquisa sobre os desaparecimentos. Como consultor pro-bono, propuz realizar várias pesquisas menores, mais baratas, em seqüência, além de refinar a base de dados existente, que tem muitas deficiências. Para saber se eram homicídios, comparamos os perfis das vítimas de homicídios com o dos desaparecidos. O passo seguinte, em andamento, é baseado em entrevistas com as pessoas que registraram os desaparecimentos. O terceiro aproveitará outra pesquisa, maior, adicionando perguntas para estimar quantos são os desaparecimentos não registrados. Existem, mas não sabemos quantos são.

A notícia de que havia uma pesquisa sobre desaparecidos, realizada pelo ISP, gerou muitas especulações. As mais radicais afirmavam que muitos, talvez a maioria, eram vítimas de homicídios, cujos corpos não tinham sido encontrados. Essa hipótese, baseada em chute, é errada.
Desaparecimentos e homicídios não são farinha do mesmo saco. A análise de perfís não deixa dúvida: a predominância dos homens é muito maior entre as vítimas de homicídios: 92% vs 62% entre os desaparecidos. As mulheres representam menos de 10% das vítimas de homicídios, mas representam quatro de cada dez desaparecimentos registrados.

A idade também demonstra um perfil muito diferente: em comparação com as vítimas de homicídios: crianças e adolescentes, por um lado, e idosos, pelo outro, são muito mais freqüentes entre os desaparecidos. Há mais desaparecidos nas pontas da idade, entre os muito jovens e os idosos. É um perfil que bate com o de outros países, onde também há muitas crianças e idosos entre os “desaparecidos”. No Rio de Janeiro, os desaparecimentos são registrados pelos pais ou responsáveis, mas os reaparecimentos não. E as crianças estão brincando em casa, mas permanecem no registro dos desaparecidos. Na pesquisa que oriento apareceram muitos casos deste tipo.

Do outro lado da distribuição por idades, a percentagem de desaparecidos cresce depois dos 60 anos, em contraste com o que acontece na população porque as taxas de mortalidade aumentam e quanto maior a idade menor a percentagem sobre o total de pessoas. Os idosos representam 3% da população e 13% dos desaparecidos. Por que cresce a percentagem de desaparecidos nas idades mais avançadas? Por um lado, elas refletem a influência de doenças degenerativas, como a demência e o mal de Alzheimer; pelo outro, elas refletem a dramática perda de status que acompanha as idades avançadas, tanto na sociedade quanto na família. Perdem autonomia, passam a requerer cuidados, mas não há recursos financeiros ou emocionais para cuidá-los bem, alguns começam a vagar pelas ruas e são dados como desaparecidos. Não sabemos tratar nossos idosos – é um problema de direito próprio.

Dados de vários surveys mostraram o tremendo desprestígio das instituições públicas (federais, estaduais e municipais) no Brasil, o que pode fazer com que muitos não relatem os desaparecimentos. É a cidadania amedrontada, encolhida. A redução da cidadania, no Brasil, também se faz sentir na baixíssima percentagem dos que relataram desaparecimentos que se dão ao trabalho de informar o reaparecimento: menos de 2%!

A explicação pode residir parcialmente na dificuldade das relações com a polícia, no medo da polícia, e também pode residir parcialmente no clientelismo tradicional de uma cultura política que enfatiza direitos e não deveres, doações de cima e não conquistas de baixo. A cifra é real: 2%; as explicações são, apenas especulações que parecem sensatas. Reitero que esses mesmos fatores podem fazer com muitos desaparecimentos não sejam comunicados às autoridades. Não obstante, entre os que o foram, a grande maioria reapareceu: a pesquisa direta, feita com uma amostra dos que registraram os desaparecimentos, revela que 86% dos desaparecidos tinham reaparecido!

As notícias sobre os desaparecimentos suscitaram outra interpretação errada: os desaparecimento seriam um fenômeno do nosso estado ou, pelo menos, do nosso país. Não é assim. Os desaparecimentos são muito comuns em outros países: na Austrália, cada 15 minutos é registrado um desaparecimento, que totalizam 35 mil pessoas por ano (Missing Persons in Australia 2008). Noventa e cinco por cento reaparecem em pouco tempo, uma semana. A população da Austrália é de 21 milhões de pessoas.

Na Nova Zelândia, a polícia registra oito mil pessoas como desaparecidas por ano. A população na Nova Zelândia é apenas quatro milhões e duzentas mil. O Rio de Janeiro tem perto de 15 milhões e menos de cinco mil desaparecidos. A taxa de desaparecidos na Austrália é de 167 por cem mil; é de 190 por cem mil na Nova Zelândia e, no Rio de Janeiro, arredondando, ela é de 33 por cem mil. As taxas são muito mais altas na Austrália e na Nova Zelândia. Porém, isso não significa que realmente desapareçam muito mais pessoas na Austrália e na Nova Zelândia, mas que a população australiana e a neozelandesa relatam os desaparecimentos em maior número e mais rapidamente.

As lições dessa pesquisa, e dos números que ela produziu, vão além da descrição e das explicações para os desaparecimentos. As reações negativas aos primeiros resultados foram além da realidade. Mostraram que o imaginário da mídia e da população é pior do que a própria realidade que é, reconhecidamente, muito ruim. Num cenário em que as instituições públicas estão desacreditadas, exageramos o pessimismo das nossas interpretações.

Sou um dos poucos otimistas que a onda pessimista não afogou. Considero que a própria realização de uma pesquisa em área tão sensível revela um desejo de acertar. Valorizo o fato de que, em parte, a pesquisa foi uma resposta positiva às pressões da sociedade civil. Seus primeiros resultados dissolveram nossos maiores medos. Se buscarmos, veremos que há muitas iniciativas positivas variadas em vários pontos do país.

O Brasil tem jeito!


(publicado n’O GLOBO de 13 de novembro de 2009)

sexta-feira, 16 de outubro de 2009

Bafômetro: o que ninguém explica.

Pedro Rubim Borges-Fortes

Quando uma lei afeta de maneira significativa os interesses de uma sociedade, inicia-se uma disputa jurídica em torno da conveniência e da constitucionalidade da nova lei. Com relação à conveniência da “lei seca”, a imprensa e a opinião pública parecem já ter se rendido aos fatos. Desde que a lei entrou em vigor, o número de acidentes fatais em nossas estradas foi significativamente reduzido. Além disso, também se verificou uma significativa redução de despesas em hospitais públicos e na manutenção de nossas estradas.

Por outro lado, a nova legislação também afetou o lucro de bares e casas noturnas. Sem poder questionar a conveniência da lei, advogados destes grupos passam a questionar a sua constitucionalidade. Alegam estes advogados que a constituição brasileira assegura o direito ao silêncio e, como corolário lógico deste direito, ninguém está obrigado a produzir provas contra si mesmo. A este respeito não há dúvidas.

O direito ao silêncio está previsto no artigo 5º, Inciso LXIII, da Constituição. Em conseqüência, a pessoa acusada não precisa participar de nenhum ato processual em que ela possa vir a produzir prova contra si própria. Pode se recusar a ser interrogada na delegacia de polícia e mesmo pelo juiz criminal. Pode ainda se recusar a participar de uma reprodução simulada de fatos, em que poderia ter que reconhecer que sua versão dos fatos foi fantasiosa. Em ambos os casos, porém, a participação do acusado envolve expressão de idéias e ele possui o direito constitucional de permanecer calado. Não é obrigado a expressar idéias que possam incriminá-lo.

A este coro de advogados se uniu o doutor Ary Bergher, em artigo publicado no dia 14/08, em que associa tais direitos à tradição jurídica iluminista e à proteção contra a tortura. Surge, então, um paradoxo: todos os modernos países ocidentais seguem esta mesma tradição, repudiam a tortura e, ainda assim, adotam o emprego obrigatório do bafômetro como estratégia para reduzir as mortes no trânsito. Como isso pode ser possível? O que nenhum dos nossos advogados explica é que, ao redor do mundo, a interpretação que se dá a estes direitos está diretamente ligada à sua trajetória histórica de proteção ao silêncio e à liberdade de consciência.

A Constituição norte-americana foi a primeira a prever o direito ao silêncio. Nos Estados Unidos, o bafômetro e o princípio da auto-incriminação convivem em perfeita harmonia. A explicação é simples: o motorista que sopra o bafômetro não está expressando nenhuma idéia. Soprar o bafômetro não viola a consciência do motorista. Ele está simplesmente entregando uma amostra de material para ser submetido a análise científica. Não por acaso, o direito norte-americano também autoriza os juízes a intimarem acusados para providenciarem uma amostra de material para que seja feito o exame de DNA. Finalmente, há um exemplo bastante esclarecedor. Sempre que é necessária a realização de exame de identificação de voz, a pessoa acusada não pode se recusar a providenciar uma amostra de sua voz para análise científica. Ainda que ela tenha o direito de permanecer calada, este direito está diretamente relacionado à proteção da consciência do acusado. A mera repetição de um texto em voz alta não ofende sua dignidade pessoal, nem viola sua liberdade de consciência.

O direito norte-americano é bem claro. O princípio da auto-incriminação abrange apenas atos que envolvam a expressão de idéias. Logo, o bafômetro não viola a constituição. No direito brasileiro, o STF deverá em breve esclarecer a questão. Temos as mesmas cláusulas constitucionais. Temos a mesma necessidade de conter as mortes no trânsito. Temos que ter uma decisão que desconstrua o discurso formalista dos advogados brasileiros e que atenda às necessidades de nossa sociedade, a quem a Constituição, em última instância, se destina.

Pedro Rubim Borges-Fortes é Professor da FGV, Promotor de Justiça, Mestre em direito por Harvard e por Stanford, e já foi parado para fazer teste do bafômetro na Espanha, onde essa história de inconstitucionalidade não cola.

domingo, 19 de julho de 2009

Uma péssima compra (2)

EUA: novas tendências do fenômeno do homicídio em função do narcotráfico (cont.)

George Felipe de Lima Dantas

A tendência às 'baixas' taxas de esclarecimento de homicídios não é questionada nos EUA quanto à eficiência policial. E vale notar que lá existe uma respeitável comunidade de acadêmicos mundiais de justiçacriminal (distribuída em mais de 17 mil organizações profissionais do setor e em cerca de 700 programas acadêmicos de graduação da mesma área). É questionada, sim, a própria natureza hodierna do fenômeno.

Talvez pelo fato de que os estudos e pesquisas criminológicas que informam políticas públicas nos EUA estejam hoje baseados majoritariamente em departamentos de ‘justiça criminal’ e não de ‘sociologia’, com esta ciência social se ocupando de aspectos mais vinculados ao criminoso (na tradição da sociologia jurídica clássica) do que ao crime propriamente dito e situações conexas da modernidade, seara dos agentes da segurança pública associados ao mundo acadêmico da área de 'justiça criminal'.

Mas 'nem tudo são flores', claro -- ainda que não caiba um 'libelo acusatório' contra as polícias. O declínio das taxas de esclarecimento de homicídios parece representar uma nova ameaça no que tange a segurança pública, já que passa a aumentar não apenas o número de homicidas impunes, mas também a presença deles em meio a uma comunidade desavisada de sua existência e potencial adverso.

Em verdade, a premissa hoje generalizada de que a motivação homicida ‘por motivo fútil’ (sem qualificar a ‘futilidade’ típica) pareça ser a modal (mais freqüente), pode não ser mais sustentável. Ela é apenas mais bem detectável e, por isso mesmo, obviamente, detectável, do que a resultante do narcotráfico, esta sim, muito provavelmente modal, ainda que certamente menos detectável e, correspondentemente, menos esclarecida conseqüentemente.

A hipótese por levantar pode ser a de que o grande, médio e pequeno negócio do narcotráfico, escapa, em sua equação lógica de causalidade, circunstancia e desfecho, da trilogia comercial ortodoxa típica e que inclui (i) segurança do investimento; (ii) rentabilidade do negócio e; (iii) liquidez financeira, três conhecidas variáveis combinadas em diferentes arranjos de ‘marketing’ nos negócios lícitos.

O narcotráfico, obviamente de pouco ou nenhum ‘marketing aberto’, quando se trata do ‘lidar com o mercado’ – é um negócio em que a ‘segurança do negócio’, em garantia, é a própria vida (integridade física) de provedores e consumidores. Este seria, entre outros, mais um ‘alto custo social’ do narcotráfico, fruto de uma atividade delitiva de grande rentabilidade (multiplicada a cada repasse do ‘produto’, dos grandes fornecedores até os ‘atravessadores’, retalhistas de ponta e 'usuários passadores'), bem como da ‘liquidez imediata’ de algo que não funciona, em valorização, como um ativo financeiro clássico (“commodity”?), como é o caso quando da maturidade ou da aquisição prévia de títulos ‘em bolsa de mercados futuros’. Os 'negócios do narcotráfico' são quase sempre imediatos... Não há 'futuro' neles.

Assim, na equação desses três termos, a ‘segurança de traficantes e usuários’ tenderia a zero, enquanto a rentabilidade e a liquidez seriam maximizadas ao extremo em prol do ‘sucesso do negócio’. O Sexto Relatório Global sobre Crime e Justiça da Organização das Nações Unidas já apontava tal tendência em 1999: a do crescimento do narcotráfico, dado seus poderosos incentivos econômicos.

Nessa ‘microeconomia macabra’, as vidas dos ‘atores econômicos’ correspondentes seriam as próprias ‘garantias contratuais do Cor do textonegócio’, ocorrendo uma eventual eliminação sumária (homicídio) entre indivíduos que muitas vezes estariam fazendo contato comercial ilícito (causa) por uma única e primeira vez (circunstância).

Tal relação estaria sendo estabelecida, usualmente, em locais públicos remotos e distantes de eventuais testemunhas, até mesmo para a conveniência delitiva de vendedores e compradores. Uma ‘ótima venda ilícita’, em que seria fácil ‘eliminar o comprador’ e cada vez mais difícil do ‘vendedor ser preso’ pela eliminação física (homicídio) do ‘cliente’.
(continua)

George Felipe de Lima Dantas -- Federação Nacional dos Policiais Federais -- Ciência & Arte Policial 27/12/2008.

sábado, 11 de julho de 2009

Tropa de Elite em Perigo

Policiais, da mesma forma que homens de negócio, políticos e executivos, consideram-se pessoas práticas, que lidam com resultados. Temos todos um sólido preconceito contra experimentos teóricos e suas soluções baseadas em modelos abstratos que simplificam o emaranhado das relações humanas de uma corporação com a sua sociedade, que tentam alterá-las, adaptá-las e enfiá-las em padrões simplistas, desprezando exatamente o que há de mais rico nessas relações: a sua infinita complexidade, diversidade e imprevisibilidade.

Conhecer polícia não é exatamente compreender polícia. Botânica não é jardinagem. Se nos dias de hoje as ações nos morros e favelas cariocas estão respaldadas em investigações criteriosas e objetivam alvos previamente conhecidos - diferentemente de outros tempos, quando tentativas arrogantes submetiam as comunidades a uma violência sem sentido e distante dos princípios que determinam as ações policiais – nem por isso estamos deixando de assistir a um sofrimento incalculável de todos os envolvidos na situação. No caso da polícia, além da brutalidade de execuções que vitimam policiais a todo momento, ocorre um risco perigoso de desgaste de suas organizações de elite, equipes especializadas de alta eficiência, como o Bope e a Core.

Estudos realizados por equipes de psicólogos americanos, a partir de uma desastrosa operação militar de suas tropas de elite na Somália, nos anos 90, em que 18 soldados morreram numa tentativa frustrada de capturar um líder guerrilheiro, mostraram o efeito das dificuldades enfrentadas por aqueles que operam em situações desfavoráveis, em que há dúvidas quanto aos objetivos e às possibilidades de sucesso. A experiência foi descrita em livro e objeto de um excelente filme de Ridley Scott – Falcão Negro em Perigo.

A análise foi estendida a outras unidades importantes do exército americano, para melhor estudar os fatores de desmotivação dos soldados, frente a obstáculos a um desempenho eficaz e condizente com seus valores pessoais e seus sentimentos de dedicação e trabalho. Como era previsível, o resultado mostrou uma relação direta entre as dificuldades para cumprirem sua missão e o moral dos patrulheiros. Pior do que suportar os riscos da batalha era a impossibilidade de executar bem o trabalho para o qual haviam sido treinados. Porém o estudo trouxe uma revelação importante: os elementos mais motivados e empenhados, aqueles que tinham os mais sólidos princípios, eram os que apresentavam a maior taxa de desilusão e de falta de motivação. Segundo o professor Thomas W. Britt, psicólogo e coordenador do trabalho, “...o patrulheiro que se importava mais com o trabalho era justamente aquele que se sentia mais desmoralizado quando impedido de dar o melhor de si.”

Aqui, em outra galáxia, podemos também perceber que o policial que mais preza sua profissão, que mais se empenha em seu trabalho, é o que mais fortemente sente as pressões e dificuldades para a realização de sua missão. Este me pareceu o melhor aspecto do filme de José Padilha, Tropa de Elite: a abordagem dramática dos conflitos de ser um verdadeiro policial no Rio de Janeiro. As incursões punitivas dos chamados “bondes”, a violência das disputas entre quadrilhas e os costumeiros atentados a policiais em posições estáticas mostram com quem nossa polícia lida. A dificuldade de proteger civis, o risco de perder o controle sobre situações de uso da força, a reportagem infeliz – que também atinge sua família – tudo isto faz com seja necessário ficar atento ao estado de ânimo dos mais empenhados. Serão eles os que poderão mais cedo deixar de dar o melhor de si, prejudicando a capacidade das instituições de elite das polícias de sustentar seus níveis de excelência e eficiência operacional.

Policiais são homens de ação. Uma das características dos homens de ação é que quanto mais aprendem, mais aumenta a sua incerteza. E é justamente sobre isto que nossos policiais mais experientes podem ajudar seus superiores a refletir: que não devem seguir certos rumos, não porque conheçam as forças que serão despertadas, e sim porque as não conhecem. Que têm alguma idéia, alguma percepção de tendências apenas vislumbradas, mas pressentem que enfrentá-las sem uma melhor compreensão de sua natureza poderá levar a um resultado desastroso: o de a polícia ser deixada só, na tarefa de combater o tráfico de drogas nas favelas do Rio de Janeiro.

sexta-feira, 10 de julho de 2009

Uma péssima compra

EUA: novas tendências do fenômeno do homicídio em função do narcotráfico

George Felipe de Lima Dantas

Interessante e talvez mesmo paradoxal a constatação norte-americana de que com todas as novas tecnologias forenses emergentes do século XXI, incluindo as de identificação humana por fragmento genético (DNA), tidas como instrumentais para uma maior e melhor resolução de casos de homicídios, tais avanços não estejam sendo acompanhados de maiores níveis de taxas esclarecimento de casos de homicídios ocorridos naquele país. É isso que indicam as taxas de esclarecimento determinadas nos EUA, desde o início dos anos 1960 até os dias atuais.

Os números estudados que revelam a tendência são os mais recentemente difundidos pelo Federal Bureau of Investigation - FBI (Bureau Federal de Investigação), universalmente conhecido órgão policial federal norte-americano e que mantém, desde a década de 1930, o sistema Uniform Crime Report -UCR (Relatório Padrão do Crime - estatísticas de segurança pública, incluindo índices de elucidação ou resolução de crimes). Vale ressaltar que, de maneira geral, o esclarecimento de ocorrências policiais de homicídios, de acordo com a metodologia UCR apontada pelos norte-americanos, acontece pela determinação direta ou indireta da autoria do delito. Existem também meios excepcionais de esclarecimento.

Considerando que a metodologia para estudos sobre o esclarecimento de casos de homicídios tenha sido mantida constante nos EUA desde 1963 (4.566 ocorrências brutas havidas naquele ano), as taxas já disponíveis de esclarecimento de homicídios para 2007 (aplicadas sobre 14.811 ocorrências brutas havidas neste outro ano) apontam uma queda de 91% de esclarecimentos em 1963, para 61% em 2007 (redução linear de cerca de 0,7% a cada ano desde então). Ou seja, uma redução linear total de 30%, ou anual de cerca de 0,7%, em uma série histórica de 44 anos.

A situação naquela mesma série, já agora considerando cidades de mais um milhão de habitantes - também de acordo com o FBI - aponta níveis de esclarecimento que caem de 89% para 59%, respectivamente em 1963 e 2007, novamente mostrando um diferencial para menos de 30% ao final da série de 44 anos. É ainda mais marcada a tendência declinante da taxa de esclarecimentos quando se trata de cidades de maior porte demográfico, do que na média geral de esclarecimentos havidos nos EUA, independentemente do porte demográfico dos locais de ocorrência.

Nas décadas de 1970 e 1980 a tendência decrescente das taxas de esclarecimentos norte-americanos aponta patamares menores ainda. No início de 1970 eram esclarecidos cerca de 80% dos casos, com a taxa baixando para menos de 70% ao final da década de 1980. Ou seja, a redução de 30 pontos percentuais nos esclarecimentos na "grande" série histórica 1963-2007, já mais recentemente, especificamente na série histórica que corresponde ao período 1970-1980, vai ficando mais pronunciada ainda.

A taxa de resolução de casos de homicídios, portanto, tende a diminuir mais ainda nos EUA, à medida que o tempo vai passando, desde a década de 1960 até os dias atuais. Ora, se o objeto é o mesmo e a metodologia de estudo foi mantida constante (e tudo indica que foi…), é de supor que o fenômeno criminológico (incluídos entre seus objetos de estudo o crime propriamente dito, os criminosos seus autores e questões conexas como é o caso da taxa de esclarecimentos) no qual o delito do homicídio está inserido deva ter sofrido alguma transformação, vis-à-vis taxas de esclarecimento estavelmente declinantes.

E é exatamente isso o que intuem os membros da comunidade policial norte-americana, referindo um incremento nas mortes por homicídio motivadas pela atividade do narcotráfico, mortes estas ocorridas geralmente em circunstâncias impessoais e/ou anônimas (autor e vítima que não se conhecem e com pouca ou nenhuma evidência que transcenda o "local do crime"), ao contrário de ocorrências de mesma tipologia penal havidas, por exemplo, no ambiente intralar (homicídios passionais com ‘história’ e testemunhas melhor determináveis) e em espaços semi-públicos (em bares e restaurantes, por exemplo, passiveis de farta materialidade na investigação factual e com maior disponibilidade de prova testemunhal).

Aumentam, assim, os casos não-esclarecidos, pela própria natureza do fenômeno - muito possivelmente função da motivação mais típica - que também passou a transformar-se (mudança qualitativa) e produzir incremento na frequencia de ocorrência (mudança quantitativa) e diferenciação para menos no esclarecimento do fenômeno dos homicídios. Passa a ser simplista e meramente ideológica a referência a uma pior qualidade do serviço policial para explicar taxas 'pequenas' de esclarecimento de homicídios, tanto no Brasil quanto alhures.
(continua)

George Felipe de Lima Dantas -- Federação Nacional dos Policiais Federais -- Ciência & Arte Policial 27/12/2008.

domingo, 5 de julho de 2009

Boas Intenções

Por vezes ouvimos sugestões bem intencionadas de tornar o Disque Denúncia mais acessível ao povo, tornando seu número de telefone gratuito e mais fácil de ser recordado. É uma posição simpática e que parece razoável quando não se tem a compreensão daquilo que faz com que o Disque Denúncia seja um instrumento eficaz de combate ao crime, de apoio à polícia em suas ações de investigação e de prevenção ao crime. E, principalmente, é uma idéia equivocada e perigosa, que pode inviabilizar a eficácia comprovada do serviço.

Antes de tudo, o DD não é uma central de emergência. Não deve jamais concorrer com o 190 ou com o 192, destinados a socorrer pessoas e comunidades de forma imediata, dando uma pronta resposta a situações de perigo, desastres e ameaças de tragédias. O Disque Denúncia é uma central destinada a receber do cidadão informações sobre atividades criminosas que merecem atenção das autoridades. Isto o torna um importante instrumento de inteligência policial.

Como toda central de inteligência, o Disque Denúncia necessita formar um banco de dados com informações confiáveis. Não se pode mobilizar uma equipe policial com informações irrelevantes ou falsas. Outro grande problema que enfrentamos é o de lidar com o excesso de informações sobre uma ocorrência, confundindo mais do que ajudando os policiais em seu trabalho. As centrais de 190 e de 192 podem rastrear a ligação, e, em alguns países, estabelecem pesadas multas aos que ligam para trotes ou brincadeiras. Mas o que fazer, quando garantimos o anonimato e não rastreamos a ligação? Como criar um filtro, algo que diminua o número de ligações irrelevantes e trotes, e que melhore a qualidade das informações, sem prejudicar a segurança do denunciante?

A solução que adotamos tem muito a ver com a necessidade de se confiar na consciência do cidadão, acreditar em seu comprometimento com a cooperação social. E na sua capacidade de julgamento e liberdade de escolha, como ser humano livre que é. Vivemos situações semelhantes no país, quando foi percebido que as pessoas, em sua maioria, querem viver em um país melhor e estão dispostas a dar sua contribuição para que isto aconteça.

O número do Disque Denúncia não deve ser difícil, é claro, mas também não deve ser muito fácil. Deve ser acessível à comunidade, estar em toda parte, menos na cabeça do cidadão. Quando ele presenciar uma atividade ilícita ou desconfiar de que algo errado esteja acontecendo, irá refletir se vale a pena ligar para o DD. Se o fato for realmente importante, o denunciante deverá procurar e encontrar o número com facilidade. Aí está a primeira avaliação da gravidade ou não da situação. O assunto é objeto de reflexão do cidadão: ele é o primeiro e principal analista do sistema. É quem toma a primeira decisão importante: ligar para o Disque Denúncia.

Há uma segunda situação de reforço na qualidade da informação: a ligação é paga. Quando uma equipe policial inicia uma investigação ou uma ação de policiamento, está baseada numa ligação anônima, sim, mas que não é gratuita. Alguém se dispôs a pagar para levar aqueles dados às autoridades. Não se está utilizando recursos do Estado à toa. Seria bastante temerário, talvez imprudente, basear todo o esforço de uma equipe policial em uma informação anônima, vinda de uma ligação gratuita através de um número tipo 190, de três dígitos. É claro que mesmo assim existem ligações irrelevantes, trotes e vinganças, não há vacina contra espíritos de porco. Mas não conseguem inviabilizar o sistema.

Quando se tem uma central de atendimento gratuito e que usa um número fácil, qualquer acontecimento mais grave inviabiliza o sistema. Imaginem um crime de comoção pública, ou uma oferta de recompensa por um criminosos perigoso: os canais seriam sobrecarregados de ligações, prejudicando exatamente aquelas pessoas que teriam as informações necessárias à ação policial de sucesso. Os sistemas de atendimento baseados em telefone gratuito de três dígitos não conseguem, por motivos de logística, dar um atendimento satisfatório à população. O número de ligações perdidas e irrelevantes supera o de registro de denúncias. Além disso, demandam um custo operacional muito mais alto, em função da necessidade de um número desproporcional de operadores.

O Disque Denúncia deve seu sucesso ao apoio da população que, curiosamente, não se manifesta, através de nossos telefones, por uma mudança para outro sistema.

segunda-feira, 22 de junho de 2009

A Estruturação de Atividades Criminosas

Claudio Beato
Luís Felipe Zilli
CRISP – Centro de Estudos de Criminalidade
e Segurança Pública
- UFMG

A cidade do Rio de Janeiro tem se notabilizado pela ocupação de territórios por grupos armados, onde o estado tem muitas dificuldades de se estabelecer. Via de regra, a estratégia tem sido a do confronto através de escaramuças, realizado de forma pontual, descontinuada e sem complementaridade com outros tipos de ações. Além de ineficaz, essa forma de enfrentamento produz número elevado de vítimas, inclusive entre a população civil local, contribuindo com grande sentimento de hostilidade e ressentimento em relação à polícia.

Por outro lado, numa vertente diametralmente oposta, diversos segmentos sociais condenam as ações de confronto, a partir da constatação de que somente intervenções sociais profundas irão alterar as condições para que o estado esteja assentado de forma permanente. Este tipo de argumento, no entanto, encontra dificuldades para explicitar como se restabelecem as condições de ordem para que ações sociais ocorram.

Este tipo de situação não é exclusivamente carioca. É observada em diferentes graus, em outras áreas metropolitanas do país. Por todo o Brasil, muitos são os exemplos de espaços urbanos frutos de loteamentos irregulares e realocações temporárias onde, já em sua origem,a ilegalidade na ocupação do solo e na provisão de serviços terminou se constituindo em referência.

A estruturação de atividades criminosas, em seus estágios iniciais, tem uma lógica mais societária do que econômica. Isto leva a que muitos episódios de guerras entre gangues e grupos criminosos seja por motivos banais que ensejam uma infindável seqüência devinganças, retaliações, vendettas, conflitos, trocas de tiros, traições, crueldades e chacinas de toda a sorte. Aspectos sociais também contribuem para estabelecer as condições de eclosão da violência. Famílias desestruturadas, gravidez precoce, pouco tempo em escolas, além do alcoolismo e drogadicção criam igualmente o contexto para o surgimento de gerações de jovens com baixo grau de supervisão, cujos familiares tem limitado controle sobre seus comportamentos.

A partir dos 80 iniciou-se então em período de intensa competição entre estes grupos, marcada por um processo seletivo de depuração através de violentos conflitos e grande numero de mortes. Aqui inicia-se a utilização massiva das armas de fogo. Também entra em cena de forma sistemática um novo personagem que terá uma contribuição decisiva no processo: o policial violento e corrupto. Justamente esta intensa atividade criminal e a proeminência e notabilidade de algumas lideranças é que irá torná-los alvos preferenciais do sistema de justiça o que fará que muitas das rivalidades e antigas alianças sejam refeitas para fins de proteção dentro das prisões. Muitas das gangues de Los Angeles, ou até mesmo as Maras salvadorenhas sofreram o mesmo tipo de upgrade no sistema prisional. No Brasil, o Comando Vermelho, o Terceiro Comando Puro ou o PCC são os exemplos mais notórios. Tratase de período de intensos conflitos e grande numero de mortes. Atualmente, boa parte das comunidades em conflito no Rio de Janeiro encontra-se neste nível de estruturação.

Geralmente, o terceiro estágio tem início em função de um processo seletivo que toma corpo no momento em que há o enfraquecimento dos grupos ligados a uma facção e, conseqüentemente, o predomínio dos outros. O que ocorre nesta fase é uma tentativa de se minimizar conflitos entre grupos através de formas radicais de controle de mercado, incluindo até a eliminação ou prisão de competidores. Além disso, há uma expansão das atividades comerciais que agora não se limitam apenas ao tráfico de drogas, mas estende-se a diversos outros tipos de atividades ilegais, tais como a venda informal de serviços e bens públicos através de “gatos”, provisão de bens e serviços como gás, transporte e segurança, e até mesmo a exploração de prostituição.

O processo mais importante desta fase é o particionamento de produtos e territórios de forma a minimizar conflitos. Assim, cooperação entre grupos e cooptação de policiais pode ser uma alternativa melhor do que a guerra entre facções. Violência em excesso não é uma boa opção para grupos que passam a pautar-se crescentemente pela lógica econômica, e pela expansão de mecanismos de controle e monopólio de mercados. Uma indicação deste processo é o ingresso das milícias no cenário da violência carioca, buscando a reorganização das atividades em outro patamar. No caso colombiano, foram os paramilitares que cumpriram este papel.

Um quarto estágio seria o crime organizado globalizado e de inserção internacional, com participação diversificada no mercado econômico, nos moldes da máfia ou dos cartéis internacionais. Não há ainda uma indicação muito clara de formação de algo desta natureza noRio de Janeiro.

Cada estágio destes exige intervenções de distintas naturezas. No estágio inicial,
intervenções sociais seriam suficientes e um custo relativamente baixo. Quando se perde esta oportunidade, já no segundo estágio, torna-se necessário agregar um custo a mais, relativo ao estabelecimento de condições que na verdade nunca foram dadas – a provisão de segurança e justiça. Já no terceiro estágio, se nada tiver sido feito anteriormente, as condições serão ainda mais adversas, pois teremos em curso um processo com capacidade de corrosão institucional mais elevada, embora com grau de violência menor.

O Rio de Janeiro parece vivenciar hoje uma situação com predomínio de elementos do segundo estágio. Dessa maneira, torna-se inevitável a adoção de estratégias visando o restabelecimento da ordem, retomada de territórios e erradicação das armas de fogo nestes locais. Sem estas, ações sociais serão inócuas. A questão é, em que medida elas serão contempladas numa visão estratégica e de maior amplitude, permitindo que as escaramuças sejam substituídas por uma ocupação permanente e estável, que torne possível a implantaçãode ações de desenvolvimento social. Um sem o outro terá alcance limitado e precário. Nas comunidades que já vivenciam o terceiro estágio, como tem sido fartamente documentado pela imprensa carioca, terão que ser utilizadas medidas de cunho fiscal e regulatório ao invés das meramente policiais. Cada fase, portanto, merece um tipo particular de intervenção.

quinta-feira, 11 de junho de 2009

O que está acontecendo com o crime em São Paulo?

Há duas semanas, a Secretaria da Segurança Pública de São Paulo tornou públicos os dados sobre a criminalidade no último trimestre. É um ato corriqueiro em paises com transparência e tem sido um comportamento contínuo no Estado de São Paulo há muitos anos. Mas, para vergonha nossa, ainda há estados no país qCor do textoue não divulgam os dados, há os que os maquilam e adulteram, ou os publicam com muito atraso.

Os dados divulgados talvez não causassem reação não fosse São Paulo o único estado brasileiro a exibir bons resultados há muitotempo: os homicídios vêm baixando há 29 trimestres e São Paulo é, hoje, uma referência internacional no controle da violência, juntamente com Nova Iorque, Bogotá, Medellín e alguns outros lugares. Ocupa, no Brasil, uma posição invejável. Há debates e discordância sobre as causas dessa redução, mas não a respeito da sua existência.

O estado foi administrado pelo PSDB desde Mario Covas o que introduz uma dimensão político-partidária. Evidentemente, políticos e simpatizantes afiliados a outros partidos se sentem incômodos com o contraste entre o êxito paulista e o fracasso em tantos estados com governadores de seus partidos.

Os resultados recém divulgados não foram tão bons quanto os anteriores. Os criminólogos olham para isso com tranqüilidade; porém alguns políticos, inclusive jornalistas comprometidos politicamente, sem familiaridade com os dados criminais, expressaram sua alegria.


O que houve? Os homicídios cresceram 0,7% no Estado, porém na capital e na Grande São Paulo caíram 6%, uma queda considerável. Mesmo computando o pequeno aumento, a taxa paulista é, de longe, a mais baixa do país. Se os dados seguintes indicarem a mesma tendência à estagnação, muda a forma do fenômeno, que já é conhecida. Chegaram a um plateau.

O que é isso? Algo que acontece com quase todas as políticas públicas bem sucedidas: chegaram ao limite, até onde poderiam chegar. Aconteceu com muitas legislações e com as políticas públicas que se originaram nelas. A “antiga” Lei do Trânsito reduziu as mortes durante quase duas décadas, mas passou a provocar reduções cada vez menores. Alguns chamam isso de efeito-chão (não dá para baixar mais) que, visto positivamente, é um efeito-teto. Os efeitos desse tipo não indicam que chegamos ao limite do possível; indicam que chegamos ao limite dessas políticas. A “nova” Lei do Trânsito provocou uma redução substancial de mais de quatro mil mortes (vidas salvas) só no seu primeiro ano. Infelizmente, a implementação das mesmas medidas ficou cada vez mais desleixadas e as mortes no trânsito voltaram a aumentar.

É importante saber que, quando há um grande crescimento ou uma grande redução, a composição dos homicídios se altera. Vítimas e assassinos não são os mesmos quando as taxas são altas e quando são baixas. Os homicídios não são todos iguais; há tipos muito diferentes – difere a vítima, difere o autor, difere a relação entre eles, difere a arma, difere o local da ocorrência e muito mais. No Brasil das últimas décadas, o crescimento dos homicídios tem uma vinculação íntima com o tráfico de drogas e de armas e com o crime organizado (sem colocar o grau de “organização” dos traficantes num nível empresarial). Quando há explosões de homicídios, as taxas de crescimento das mortes masculinas é substancialmente mais alta do que a das femininas. Quando houve redução rápida, ela foi maior entre os homens. As políticas públicas aconselhadas para países com altas taxas de homicídio são claramente diferentes das aconselhadas para países com baixas taxas.

Quando o êxito das políticas anteriores tem rendimentos decrescentes significa que há necessidade de novas políticas, assim como de aperfeiçoamento das anteriores. Reduzidos os homicídios relacionados com o tráfico, cresce a significação relativa dos homicídios entre íntimos. Porém, aprevenção de homicídios entre íntimos difere muito da prevenção de homicídios associados ao tráfico etc.

Crimes diferentes não têm a mesma fidedignidade, nem o mesmo peso, daí a dificuldade em construir índices de criminalidade – nos mais simples, que simplesmente somam os crimes, o furto de um celular pesa tanto quanto um homicídio, um absurdo. As pesquisas de vitimização mostram que a sub-enumeração de alguns crimes é de tal magnitude que desfigura os dados. Um “crescimento” pode não significar um crescimentodo crime, mas da confiança nas instituições. Há perigosos viéses seletivos: escolher os que mais cresceram para desacreditar a política ou os que mais caíram para mostrar seus méritos. Um dos artigos publicados mostra um crescimento de 36% nos latrocínios, sem informarque os latrocínios representam uma percentagem pequena do total de mortes violentas intencionais. Naquele trimestre houve 94 latrocínios, 1001 homicídios culposos no trânsito, e 1207 vitimas de homicídios intencionais. A redução nos homicídios culposos no trânsito foi maior que a totalidade dos latrocínios no trimestre...

Outro dado importante tem a ver com a distribuição geográfica dos crimes com estatísticas confiáveis. Há muita variação entre as taxas dos municípios e das regiões paulistas, sugerindo fenômenos mais localizados que requerem atenção concentrada: algo diferente está acontecendo nessas áreas.

Precisamos melhorar a qualidade dos dados e reduzir a sub-enumeração dos crimes. Enquanto isso não acontece, temos que trabalhar com os mais confiáveis: os que deixam cadáveres, assim como furtos e roubos de veículos, dada a obrigatoriedade do registro para obter o seguro. E o leitor deve se informar para poder ler criticamente o que publica.

Publicado no Correio Braziliense, em 10/06/2009

Conjuntura Criminal - tudo sobre crime e violência

sexta-feira, 5 de junho de 2009

Dossiês do Disque Denúncia de Campinas ajudam a polícia a elucidar crimes

Do site da Secretaria de Segurança de São Paulo:
http://www.ssp.sp.gov.br/home/noticia.aspx?cod_noticia=16136

Iniciativa pioneira na polícia paulista, os dossiês elaborados na sede do Disque Denúncia de Campinas têm ajudado os investigadores a desvendar crimes que poderiam permanecer impunes por falta não só de provas, mas até mesmo de indícios que levem a pistas mais consistentes para descobrir a autoria. Desde 2002 até abril de 2009, o Disque Denúncia recebeu 126.278 ligações, que geraram 72.901 orientações ao público e 53.377 denúncias. Do total de denúncias – a maioria sobre tráfico de drogas, a polícia solucionou 5.350 casos, já que várias denúncias se referiam ao mesmo caso ou eram infundadas ou inconsistentes.

Em geral, a investigação clássica de polícia judiciária numa delegacia ou distrito policial começa quando uma dupla de investigadores, os tradicionais "parceiros", recebe da "chefia" a cópia do boletim de ocorrência de um crime de autoria desconhecida. Eles pegam uma viatura e saem, em diligências, tendo apenas as informações contidas no boletim para iniciar a investigação. O histórico dos boletins de ocorrência – um resumo do fato –, quase sempre não fornece pistas que levem ao paradeiro dos criminosos. E os "parceiros", que contam com poucos recursos, devem driblar as dificuldades e resolver o quebra-cabeça.

Mas em Campinas, desde 2002, os policiais civis de distritos e unidades especializadas contam com um valioso aliado: os dossiês redigidos no Disque Denúncia por uma equipe composta por duas escrivãs e duas investigadoras,que são coordenadas pelo delegado Marcelo Favero, além de funcionários da Organização Não Governamental (ONG) "Movimento Vida Melhor". Esses documentos sigilosos recebem uma capa e ficam ‘trancafiados’ na sala que o delegado tem no Disque Denúncia. Não estão disponíveis nem na intranet da Polícia Civil. Se alguma autoridade requisitá-los, vai receber uma cópia em mãos.

Equipe afinada
A equipe de policiais civis foi "escolhida a dedo e está comigo desde o início, quando surgiu o Disque Denúncia de Campinas, em 2002", comenta Favero, que também é delegado titular do 1º Distrito Policial de Campinas, e já atuou em vários outros distritos da cidade e na Delegacia de Investigações Gerais (DIG). O Disque Denúncia conta, ainda, com mais seis policiais militares e dez funcionários da ONG Movimento Vida Melhor, que têm seus próprios coordenadores.
Os dossiês são um relatório completo e detalhado da ocorrência de crimes que se repetem numa mesma área, envolvendo os mesmo autores e seu "modus operandi" ou a forma como os criminosos agem. Reúnem um pouco do relatório policial com informações técnicas e precisas.

Um dossiê ou relatório começa a ser gerado, quase sempre, quando chegam quatro ou mais denúncias com as mesmas características. Todas a denúncias ficam armazenadas num banco de dados com programa específico. As policiais civis e funcionários da ong tiram desse banco de dados as informações para redigir o dossiê. Mas é o delegado Favero que dá a orientação geral.
O documento contém nome e/ou apelido do suspeito, natureza do fato (furto, roubo, tráfico, moeda falsa, pedofilia, etc.), horários, organogramas, se está em andamento e as providências tomadas. Em média, cada dossiê tem 20 páginas, mas pode chegar de oito a 150. A capa do dossiê recebe uma cor que identifica a natureza do crime, um número seqüencial, título e circunscrição policial (distrito e batalhão da PM). O armário do delegado Favero no Disque Denúncia já acumula mais de 400 dossiês.

Hierarquia do crime no organograma
No conteúdo, o que é considerado o "mais importante" pelo coordenador é o organograma, pois, no caso de tráfico e crime organizado, mostra a "hierarquia" dos criminosos. Mas eles trazem também mapas da área dos fatos, histórico detalhado do ocorrido, veículos e tipos de armas que estariam sendo usados pelos suspeitos. Crimes de natureza grave, como pedofilia, tráfico, moeda falsa, roubo e outros estão todos registrados em dossiês. Esses documentos confidenciais estão disponíveis também para consultas da Polícia Militar para dar mais eficiência ao policiamento preventivo.

Apesar de ser uma ferramenta valiosa na luta contra o crime, os dossiês ainda são poucos consultados pelos distritos policiais de Campinas. Mesmo assim, são enviados para as unidades policiais. "Quem mais solicita é o Departamento de Homicídios e Proteção à Pessoa (DHPP)", fala Marcelo Fávero, seguido pela Delegacia Especializada Anti-Sequestro (Deas), Delegacia de Investigações sobre Entorpecentes (Dise), e Delegacia de Investigações Gerais (DIG). Por orientação do delegado Fávero, os dossiês ajudam muito nas investigações do 1º DP, que fica no Jardim Ipaussurama e atende uma população de 240 mil pessoas.

Premiação
O Disque Denúncia de Campinas atende 24 horas pelo telefone (0xx19) 3236-3040 e foi criado em 2002 por iniciativa da Associação Comercial e Industrial de Campinas. Desde 2002 até abril de 2009, o Disque Denúncia recebeu 126.278 ligações, que geraram 72.901 orientações ao público e 53.377 denúncias – muitas delas sobre o mesmo crime ou infundadas. Do total de denúncias – a maioria sobre tráfico de drogas, a polícia solucionou 5.350 casos.

A idéia inovadora de fazer os dossiês a partir das denúncias anônimas e encaminhá-los às unidades policiais para facilitar as investigações rendeu uma premiação para a Delegacia Seccional de Polícia de Campinas, que foi inscrita no IV Prêmio Polícia Cidadã com o projeto "Elaboração de dossiês - base para investigações policiais". O projeto foi um dos nove vencedores na categoria "Ações Vencedoras", com cerimônia de entrega realizada no último dia 5 de abril, na Sala São Paulo, na região central da Capital.

Gabriel Rosado

sexta-feira, 10 de abril de 2009

Em busca do tempo perdido

Meu querido deputado, parabéns pela votação expressiva. Admiro a sua luta e todos ganhamos com sua postura ética nesta disputa. Bem que precisávamos de alguém assim por aqui. O senhor me pede algumas sugestões sobre questões de segurança pública, o que me permite supor decisões ousadas para o próximo ano. Boa sorte.

Não me acho o melhor conselheiro. Sou uma espécie de viajante involuntário, um observador casual dessas coisas de polícia e de ordem pública. Conheço vários especialistas, mas circulo por eles estrangeiro, tratado com simpatia, mas com a devida distância com que se trata, não digo um intruso, mas um convidado inesperado. Além disso, minha visão é um tanto trivial, não acadêmica e absolutamente informal.

Acharia importante, por exemplo, que os governadores e os secretários de segurança de nosso país, antes de andarem pelo mundo afora, atrás de soluções mágicas e instantâneas para a questão do crime e da violência, fizessem uma consulta a um experiente ortodontista pernambucano. Não é pelo sorriso da foto, não, e sim para estabelecerem uma importante linha conceitual na elaboração de suas políticas públicas. O senhor compreenderá, na certa.

O Dr. Lemos criou um argumento sólido e eficaz para os seus mais renitentes pacientes, que resistem à implantação de longos tratamentos, em que necessitam usar, por um, dois ou três anos, aqueles incômodos aparelhos em seus dentes. Ele vence suas resistências argumentando que, se colocarem imediatamente o aparelho, dentro de um ano irão verificar, surpresos, que o tempo passou mais rápido do que esperavam. Se não o fizerem, dentro de um ano lamentarão não terem começado o tratamento e, por isso mesmo, dificilmente o iniciarão. E o que é pior, no fim do prazo estimado, dar-se-ão conta de que perderam a oportunidade de começar a coisa certa na ocasião certa, e serão acometidos de um doloroso sentimento de “agora é tarde”.

Para que não acabe vítima deste sentimento, ao fim de uma eventual administração sua, inspire-se nos ensinamentos de Jacqueline Muniz. Eu sou um daqueles que se apropriam de suas idéias para parecer inteligente nesses debates inócuos e repetitivos sobre ordem pública. Mas sou o único que confessa. E que as aproveita com intenção de melhor fazer as coisas. Como a realidade é anacrônica, os efeitos do trabalho dessa moça de Pádua só se farão sentir em alguns anos, quando nossos homens públicos ficarão a brigar pela paternidade de resultados que não serão capazes de explicar, ou sequer compreender.

Segundo Jacqueline, nossas autoridades se recusam, como alguns clientes do Dr. Lemos, a adotar, desde cedo, os procedimentos que os levarão a soluções definitivas. Evitam e contornam uma política de segurança pública que ultrapasse a emergência, as emoções do momento, os modismos e magias de ocasião. Insistem em realizar intervenções no campo da segurança pública através de ações isoladas, descontínuas e apenas emergenciais, mostrando uma preocupante timidez e um grave desconhecimento da complexidade do problema a ser enfrentado. Deixam o tempo passar sem estabelecer metas realistas de médio e longo prazo a serem cumpridas, sobretudo em um cenário de escassez de recursos públicos. Vão caminhando, através dos seus mandatos, de prioridade circunstancial em prioridade circunstancial, negligenciando a necessidade de uma visão estrutural e estratégica capaz de enfrentar as verdadeiras questões de forma séria e profissional, inclusive no sentido político.

Ao perceberem o escoar do tempo, as oportunidades perdidas e o clamor público por soluções agora urgentes, caem na armadilha de tratar o problema como uma questão de aquisição de meios humanos e materiais para as polícias. É claro que é importante equipar as agências policiais, algumas esquecidas e desaparelhadas há anos. Mas confundir incremento de efetivo, melhorias salariais, mais viaturas e reformas de delegacias, com uma efetiva política de segurança pública, só aumentará a sensação de fracasso e impotência, quando for percebido que gastou-se muito dinheiro, sem que os índices de criminalidade tenham sofrido grandes alterações.

Iniciativas na área de pessoal e equipamentos são irresistíveis, na medida em que se tornam imediatamente visíveis para a opinião pública. Mas são apenas medidas de rotina. Estão longe de configurarem uma política de segurança pública, que, antes de tudo, exige uma mudança de filosofia, doutrina, métodos e técnicas de atuação das polícias. Mais ainda: uma Política de Segurança Pública, com iniciais maiúsculas, deve estar comprometida com a cidadania, incorporando a colaboração de todos os atores responsáveis pela produção de segurança: os cidadãos e suas comunidades (inclusive as comunidades de negócios) e as agências públicas prestadoras de serviços essenciais.

A polícia não pode ser deixada só, na difícil empreitada de combater o crime e a violência em nossas metrópoles. A Central Disque-Denúncia constitui um bom exemplo de como a construção de parcerias entre o poder público e a sociedade civil é um caminho frutífero (e inevitável) quando se busca ampliar e melhorar a oferta de segurança pública aos cidadãos, reduzindo custos e otimizando a relação custo/benefício. E deixa claro que, para se contar com a compreensão e o apoio da população, é necessário agir de forma transparente, estabelecendo instrumentos de comunicação, avaliação e de prestação de contas a esta população.

Da mesma forma que o Dr. Lemos elabora seus tratamentos, é desejável que uma POLÍTICA DE SEGURANÇA PÚBLICA, com letras maiúsculas, seja construída também a partir de um diagnóstico o mais preciso possível. Sem avaliar a realidade criminal e seus problemas específicos, locais, não haverá como instruir um plano racional e integrado de intervenções, sobretudo preventivas e inteligentes. E nem como fazer frente aos desafios e necessidades identificados, gerando resultados efetivos e palpáveis, que tragam tranqüilidade aos cidadãos de bem.

Construir uma Política de Segurança Pública acima das circunstâncias políticas, submetê-la à aprovação da sociedade civil e conquistar a sua participação, é uma oportuna ousadia. Aqueles que aceitarem o desafio de construí-la como um programa político feito com competência e seriedade, irão colher os frutos reservados para os que estão sempre em sintonia com os desafios de seu tempo. Mas, voltando aos princípios do Dr. Lemos, é preciso, um dia, começar.
Obrigado pela confiança, e, mais uma vez, boa sorte.
Zeca Borges