quarta-feira, 7 de novembro de 2018

TIRANOS


                                                                                                                                                              Zeca Borges
Não me esqueço daquele dia de julho de 1967. Eu saía do edifício Marquês do Herval, no centro do Rio. Todos os que frequentaram a livraria Leonardo da Vinci, no subsolo, ou o escritório de Hércules Correia, na verdade uma central do Partidão, num dos andares do alto, sempre recordam aquela espiral da saída. Pois eu estava lá, no fim da espiral, quando percebi os papéis    picados caindo no chão da avenida Rio Branco. Eram poucos e tímidos. Os tempos eram difíceis. Fui subindo em direção à Presidente Vargas, curioso, olhando as janelas dos prédios. Elas se abriam e logo a mão de alguém lançava um punhado de papéis picados. Ao chegar à esquina da Nilo Peçanha, quando a vista se alarga para os lados do Castelo e da Carioca, pude perceber a festa silenciosa. A chuva branca aumentara, espalhara-se pela São José e pelo alto da Rio Branco. 
Esperando o sinal abrir, ouvi a notícia: o marechal Castelo Branco morrera num acidente no Ceará. As pessoas sorriam e se abraçavam. Cruzavam os olhares cúmplices pela rua. Encontrei um amigo. Abrimos os braços, alegres. Trocamos notícias e boatos. Naquela noite os bares ficaram cheios, como se um América de todos nós tivesse sido campeão. As comemorações atravessaram a madrugada. E olhem que foi um acidente, o nosso primeiro ditador de plantão fora vítima de um mero choque de aviões no céu de Mecejana. Não sei como foi na Nicarágua, quando Somoza morreu, em 1980. Teria havido mais vibração? Afinal, sua morte foi obra de um atentado.  Um tiro de bazuca explodiu o seu carro blindado, em Assunção. 
É curioso como as pessoas comemoram a morte e o justiçamento de tiranos. Lembro-me sempre da foto de Mussolini e Carla Petacci, fuzilados e pendurados num posto de gasolina em Milão, o povo ao redor, gente sorrindo. Uma festa popular. E, muitas vezes, os matadores viram heróis. Encontrei outro dia, na seção "Há 50 Anos", da Folha de S. Paulo, a seguinte manchete de primeira página: "A CÂMARA URUGUAIA HOMENAGEIA UNANIMEMENTE A MEMÓRIA DO MATADOR DO PRESIDENTE SOMOZA. Era tio do ex-ditador morto no Paraguai. O justiceiro homenageado foi o jornalista Rigoberto Lopes Pérez, morto logo após o atentado. 
Outro dia, quando li as notícias da jovem soldado da PM de São Paulo que reagiu a um assalto e atirou em um bandido que ameaçava mães e suas crianças, lembrei-me da comemoração pela morte de Castelo Branco. O que liga esses dois acontecimentos, o que me surpreende, é o fato de algumas pessoas acreditarem que todos aqueles que, nos dias de hoje, lutamos pelos direitos civis –    e muitos de nós lutaram contra a ditadura – se devam comover com a morte de assaltantes ou soldados do tráfico de drogas. Se festejamos a morte de grandes tiranos, porque alguns ficam perplexos diante da satisfação de outros pela morte dos tiranetes do nosso cotidiano, que não dariam chance a uma mulher grávida, ou a um policial voltando do trabalho?
Não posso falar pelos outros, mas devo afirmar que não me comove o mais trágico destino de qualquer desses criminosos. Sei quem são, e nessa luta não há lugar para tolos. É possível que a questão não esteja em quem morre, mas em quem mata. Na verdade, o que me interessa nessa história toda, é o comportamento da minha polícia. Se um traficante é executado por um policial, é estabelecida uma grave ameaça contra qualquer cidadão, contra todos nós. Isto é inaceitável. Se a polícia sair por aí executando, mesmo se só morressem criminosos, a violência ficaria incontrolável. Mas se um criminoso morre numa disputa de facções ou em confronto com a polícia, tudo muda.
Repito: não me comove a morte de um bandido, mas se for uma execução, me preocupa. Aí estaremos todos correndo risco, por mais encastelados que estejamos. E mais ainda os moradores das comunidades. Porque a garantia efetiva que qualquer cidadão tem de que os seus direitos serão respeitados pela polícia, é essa polícia respeitar os direitos do pior dos bandidos. Se ela o faz, certamente respeitará os dele. A garantia que temos, simples cidadãos, não está apenas no fato de estarmos numa democracia, o Congresso estar aberto, haver juízes de plantão, os jornais estarem rodando livres. Isto ajuda, mas se tem mostrado muito distante de nosso dia a dia. A garantia efetiva que temos, insisto, é a prática diária de nossa polícia. E é por isso que devemos lutar e exigir um compromisso dessa polícia com o respeito rotineiro aos direitos de todos. Por nós e por eles, os policiais - jamais pelos bandidos.